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NO MEIO DA DEFICIÊNCIA
TINHA UMA SEXUALIDADE

Fotografia em preto e branco de plano médio de uma mulher de aproximadamente 40 anos, branca, cabelos pretos lisos compridos. Ela veste um sutiã, está deitada em cima de uma cama, apoiando a cabeça sobre a roda de uma cadeira de rodas que está dobrada também em cima da cama. Seus cabelos estão soltos, jogados para cima e ela segura o aro propulsor da cadeira com as mãos, deixando os braços para cima da cabeça. Ela aparece na parte direita da foto, com a cabeça no centro da imagem.
Rita de Cássia tem distrofia muscular e utiliza cadeira de rodas.
Foto: Kica de Castro.
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AUTOESTIMA

Foto em preto e branco mostra uma mulher de aproximadamente 40 anos, branca, olhos pretos e cabelos pretos lisos compridos na altura do peito. Ela sorri com os lábios cerrados, está nua, sentada sobre um pano xadrez com as pernas levemente arqueadas na altura do joelho. Ela está com os braços junto ao corpo, tampando os seios e entrelaçando os fios de cabelo por entre os dedos das mãos. Seu corpo está de perfil em relação à câmera e sua cabeça está virada na direção da foto. Ela está focada em segundo plano e, em primeiro plano, há alguns desenhos brancos desfocados da cabeça de um tigre e arabescos.

RELACIONAMENTOS

Foto em preto e branco mostra um casal de aproximadamente 30 anos. A mulher é branca, de cabelos pretos lisos compridos, usa vestido com renda e sapato de salto. Ela está sentada no chão de perfil, com as pernas esticadas e a perna esquerda cruzada por cima da perna direita. Ela sorri, com a cabeça virada para o lado, na direção da câmera. Atrás dela, há um homem branco, de cabelos pretos ondulados na altura da orelha, vestindo camiseta de manga curta, bermuda preta com listras brancas na lateral e tênis esportivo. Ele usa próteses nas duas pernas. Está ajoelhado sobre a perna esquerda e mantém a perna direita esticada, de forma que a sola do seu tênis está em primeiro plano. A mão direita está sobre a coxa da perna esticada e ele apoia a mão esquerda no chão, atrás da moça, inclinando seu corpo em direção a ela, sorrindo.

SEXO

Foto em preto e branco mostra um casal de aproximadamente 30 anos. A mulher é branca, de cabelos loiros compridos. Ela está deitada com a lateral esquerda do corpo apoiada ao chão, de forma que a câmera, que também está na altura do chão, visualiza seu corpo de frente. Ela está nua, mas os seios e o baixo ventre estão cobertos por um pano preto de caveiras brancas, simulando uma blusa curta e uma saia. Sua cabeça está apoiada na perna direita de um homem, suas mãos tocam o joelho dele e ela está com a cabeça virada para cima na direção dele. O homem é branco, tem cabelo curto preto, barba e cavanhaque pretos. Ele está sem camisa, sentado atrás dela e apoia a mão direita no chão, passando o braço pela frente do corpo dela. A mão esquerda acaricia os cabelos da moça. Ele está inclinado em direção ao rosto dela e os dois se olham; ela sorri. Atrás deles, há uma cadeira de rodas.

REPRODUÇÃO

Foto em preto e branco mostra uma mãe dando mamadeira ao filho bebê. Em primeiro plano, vê-se o detalhe do rosto de uma mulher de aproximadamente 30 anos, pele branca, olhos pretos, cabelos pretos lisos curtos. Seus olhos delineados por um lápis preto. Em segundo plano, desfocado, vê-se a mão direita da mulher levando uma pequena mamadeira com leite à boca de um bebê recém-nascido. O bebê está envolto em uma manta branca.

A vivência sexual faz parte do caminho humano, de forma que as pessoas com deficiência não a contornam, mas a percorrem e se inter-relacionam com ela


A

sexualidade está intrinsecamente associada à existência humana e não se reduz à dimensão física e à prática sexual; pelo contrário, manifesta-se de diversas formas em nossas vidas, abarcando as esferas do desejo, da afetividade, do prazer e até da autoestima. Além disso, os contextos social, histórico, cultural e geográfico em que os sujeitos se situam influenciam diretamente a sexualidade de cada um.

Dessa maneira, a sexualidade é uma característica íntima de todos nós e atua em muitos aspectos da vida humana, mas nem sempre é fácil lidar com ela, especialmente se estamos sujeitos às condicionantes exteriores, como educação e padrões sociais de comportamento. Por isso, não é rara a existência de diversos grupos sociais que encontram problemas na hora de vivenciá-la.

Início do Vídeo

“Sexualidade: entenda o conceito que vai além de quatro paredes”

Fim do Vídeo

As mulheres, por exemplo, geralmente têm a sua sexualidade reprimida desde a infância, dado que vivemos em uma sociedade fundamentalmente patriarcal, na qual tudo é permitido aos homens, mas quase nada é facultado às mulheres. A elas é negado o direito de viver sua sexualidade de forma natural e livre de coerções. Por isso, é comum o estabelecimento, no discurso social, de dois grupos distintos, conforme o comportamento feminino quanto às relações afetivas e à experiência sexual: o das que “se dão ao respeito”, ou seja, que têm poucos parceiros amorosos, não praticam sexo antes do casamento ou fora de uma relação estável com um homem e mantêm sua intimidade velada aos olhos públicos, e o das que “não se dão ao respeito”, justamente aquelas que têm uma postura inversa à das primeiras, pois vivenciam os encontros, o prazer e a afetividade da maneira que lhes convém, atentas à satisfação dos próprios desejos físicos e emocionais.

Não se encontrar dentro da heteronormatividade também pode ser um problema. Homossexuais e bissexuais em geral são vistos como pervertidos e são facilmente desrespeitados por sua orientação sexual. E até mesmo os aspectos raciais surgem nesse lusco-fusco de compreensões sobre a sexualidade. As pessoas negras, por exemplo, são hipersexualizadas: o homem tem seus atributos físicos exacerbadamente valorizados, em detrimento da sua personalidade, enquanto as mulheres têm sua imagem quase que exclusivamente associada à sensualidade e aos dotes físicos, herança certamente do regime escravocrata, que reduzia a mulher negra a objeto sexual do 'senhor' branco.

E nesse balaio de tabus, mitos, heranças malditas, ignorância e desinformação cabem também os equívocos e o preconceito quanto à sexualidade das pessoas com deficiência. Aliás, muita gente, ainda hoje, entende deficiência e sexualidade como coisas inconciliáveis, ou seja, acha que a vivência afetiva e sexual é incompatível com a deficiência sensorial, intelectual ou física.

De acordo com a educadora Fátima Denari, professora dos programas de pós-graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e em Educação Sexual da Universidade Estadual Paulista (Unesp), existe o direito legal, mas não o direito real de a pessoa com deficiência exercer a sua sexualidade. Por mais que a legislação garanta a ela o direito à autodeterminação, “a execução da lei fica a desejar, pois permanecemos, ainda, arraigados em entendimentos equivocados, seja do próprio conceito de deficiência, seja da expectativa que se tem sobre a pessoa nessa condição”, afirma a pesquisadora. Ela explica que isso se deve, principalmente, à perpetuação de mitos e à baixa expectativa em relação às atividades que as pessoas com deficiência podem desempenhar no trabalho, na vida social e na vida privada.

Entre as diversas crenças associadas ao tema, as mais repetidas são as que caracterizam a pessoa com deficiência como um sujeito assexuado ou, ao contrário, com uma sexualidade exacerbada. De acordo com a psicóloga Ana Cláudia Bortolozzi Maia, doutora em Educação e pós-doutora pelo Núcleo de Estudos da Sexualidade da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara, essas duas ideias preconcebidas contribuem para o preconceito em torno da pessoa com deficiência.


Pecando pelo excesso

O mito da sexualidade exacerbada recai sobre as pessoas com deficiência, especialmente os casos de deficiência intelectual, quando o assunto é o comportamento sexual e a expressão dos sentimentos e dos desejos. Essa não verdade se reproduz pela falta de conhecimento da sociedade sobre o tema, associada ao fato de, muitas vezes, pessoas com deficiência intelectual se tocarem em público.

A maneira como as síndromes e os transtornos intelectuais atuam no entendimento de normas e regras sociais pode resultar, muitas vezes, na incompreensão, pela pessoa com deficiência, sobre os limites entre público e privado. É por isso que ela, ao sentir qualquer desejo, pode buscar satisfazê-lo imediatamente, não importando onde, quando ou como. “Os profissionais relatam ‘problemas’ referentes à expressão ou à manifestação da sexualidade de pessoas com condição de deficiência. No topo, está a masturbação”, explica a educadora Fátima Denari. Segundo ela, a atividade “é o caminho para descobrir o corpo e informar ao parceiro sobre onde se gosta ou não de ser tocado”.

É comum que essa caracterização equivocada sobre a expressão exacerbada da sexualidade recaia especialmente sobre os homens com deficiência, supõe a estudante universitária Luísa*, que nasceu com distúrbio de movimento e deficiência auditiva. “Já ouvi pessoas comentando ‘cuidado com aquele tarado ali’ e isso, essa sexualização maior, vale mais para homens, para algo que a gente espera do comportamento masculino. No caso do deficiente, parece que, se ele não tem acesso à mulher com frequência como a sociedade espera, ele vai querer atacar todas ao redor, mas isso não é assim”, critica a jovem.

A crença na “sexualidade exacerbada” sustenta-se num problema que diz respeito não à forma como a sexualidade é sentida pela pessoa com deficiência, mas sim na maneira como ela se expressa e o entendimento que tem disso. Na realidade, a pessoa é carente de educação sexual, de explicações sobre como lidar com essa faceta do comportamento humano. Para adequar minimamente a compreensão da pessoa com deficiência às normais sociais vigentes, “há que se ensinar que a masturbação é algo natural e que as pessoas não fazem isso publicamente, portanto, a atividade deve ser dirigida a recintos mais íntimos, como o quarto ou o banheiro”, explica a educadora Fátima Denari.


Pecando pela falta

No lado oposto à ilusão da exacerbação sexual está a da assexualidade das pessoas com deficiência. Neste caso, todas são colocadas no mesmo barco, sem prevalência de um ou outro tipo de deficiência. Essa falsa ideia de que o apelo sexual e o desejo desaparecem com a deficiência se explica por alguns motivos.

Um deles é o fato de a pessoa com deficiência ser tratada eternamente como criança, como um indivíduo desprotegido, dependente e sem iniciativa própria. Tal compreensão equivocada se estende também aos idosos, ressalta a psicóloga Ana Cláudia Bortolozzi Maia, que se especializou em sexualidade de pessoas com deficiência. O fato de precisarem de atenção e de cuidados específicos faz com que sejam tratadas como crianças e, ora, criança não faz sexo, não é mesmo? Tratar uma pessoa com deficiência intelectual, sensorial ou física dessa forma, mesmo após a idade adulta, é negar a ela direitos básicos da vida íntima e em sociedade.

A estudante de Arquitetura e Urbanismo Fernanda Santana avalia que encarar a pessoa com deficiência como criança é considerar que ela não é capaz de se relacionar amorosa ou sexualmente, já que esses são aspectos da vida adulta: “adultos fazem sexo. Se você nunca se torna adulto, então o sexo é negado a você, se torna algo proibido, um tabu”. Fernanda tem Síndrome de Asperger, que afeta principalmente as áreas de comunicação, socialização e interesses e integra os Transtornos do Espectro Autista (TEA).

Para a estudante, a sociedade precisa entender que “um autista não vira uma criança grande depois de um tempo, ele vira um adulto autista”. Tal raciocínio vale para todos os tipos de deficiência, pois mesmo que a sexualidade seja negada, a pessoa com deficiência continuará a se desenvolver. “Muitas famílias parecem não perceber isso”, comenta Fernanda, que também defende o direito à reprodução. “Sei que é complicado, que somos vistos como vulneráveis, mas a sexualidade é um aspecto importante da vida. Tudo bem se alguns de nós não quisermos explorá-la, mas os que querem deveriam poder fazê-lo”, defende.




“Somos seres comuns, amamos, fazemos sexo, nos apaixonamos, sentimos e damos prazer. Pode ser que, assim como o caminhar, algumas coisas sejam diferentes, mas apenas isso”.

Paula Ferrari, fisioterapeuta




Outra associação equivocada, porém bastante comum, é a que se estabelece entre deficiência e invalidez ou incapacidade, as quais afetariam também a sexualidade. É como se a deficiência impedisse a realização de atividades cotidianas ― no trabalho, na escola, na vida social ―, aí incluído o sexo e as relações amorosas. “Penso que as pessoas devam parar de nos ver como exemplos de superação ou como coitadinhos, e passarem a enxergar a pessoa real que existe por trás de toda essa ‘fantasia’ social colocada na pessoa com deficiência”, queixa-se a fisioterapeuta Paula Ferrari, que é cadeirante. “Somos seres comuns, amamos, fazemos sexo, nos apaixonamos, sentimos e damos prazer. Pode ser que, assim como o caminhar, algumas coisas sejam diferentes, mas apenas isso”.

Início do Vídeo

“Sexualidade e deficiência: lutando contra o preconceito e o tabu”

Fim do Vídeo

O perigo da desinformação

Por ser um assunto sobre o qual não se fala, muitas informações erradas acabam sendo propagadas acerca da sexualidade, como as falsas crenças já citadas acima. É preciso, antes de mais nada, trazer a temática da deficiência à tona. “Se a pessoa em condição de deficiência continua ‘invisível’, como abordar temas de sexualidade sobre ela ou com ela?”, questiona a educadora Fátima Denari.

Além do preconceito, a falta de informação sobre como exercer a própria sexualidade está por trás de problemas sérios como o do abuso sexual, uma vez que se torna tarefa difícil conseguir identificar e denunciar esse tipo de violência. Para Fátima Denari, “mais do que nunca, tem-se que investir concomitantemente na formação de pais, professores, sociedade, autoridades legais e das próprias pessoas em condição de deficiência, para que tais situações deixem de ocorrer com tanta frequência”. Segundo ela, somente com a educação sexual para pessoas com deficiência e suas famílias é que se vai evitar que aquelas continuem sendo alvo de abusos e violência, “sem contar que, muitas vezes, o agressor está na própria casa ou é pessoa relacionada à família”. A educadora explica que “é preciso que se dê como entendimento primordial o fato de que somos todos pessoas, e que pessoas se expressam de várias maneiras, inclusive sexualmente; pessoas se relacionam, amam, se apaixonam, cuidam do corpo etc.”

Início da Entrevista

A imagem mostra o rosto de Ana Cláudia Maia, uma mulher de aproximadamente quarenta anos, pele branca, olhos castanhos, cabelos castanhos ondulados na altura do pescoço. Ela usa um pequeno brinco dourado e sorri para a câmera com a cabeça levemente inclinada para a direita de quem vê.

Falta de conhecimento sobre sexualidade gera preconceito em relação às pessoas com deficiência

Especialista no assunto, psicóloga Ana Cláudia Maia fala sobre o desenvolvimento da sexualidade e sua relação com as deficiências

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Falta de conhecimento sobre sexualidade gera preconceito em relação às pessoas com deficiência


[Repórter - Flávia Nosralla]

A sexualidade é um assunto sobre o qual muitas pessoas não se sentem confortáveis em falar, principalmente quando o conceito de sexualidade é restringido ao sexo em si. Como as relações sexuais não são feitas em público, acontecem na intimidade, entende-se que o assunto como um todo deve permanecer nesse âmbito, escondido, sem se falar sobre ele.

Tem-se a falsa ideia de que falar sobre sexualidade estimula comportamentos sexuais, o que não necessariamente está relacionado. Não é preciso falar sobre sexo para fazer sexo. A falta de diálogo sobre o assunto, no entanto, acaba acarretando desinformação, frustração sexual do indivíduo, gravidez não planejada ou propagação de Doenças Sexualmente Transmissíveis.

Para a psicóloga Ana Cláudia Maia, especialista em estudo da sexualidade das pessoas com deficiência, o tema sexualidade geralmente é tratado de maneira superficial e restrita.

[Entrevistada - Ana Cláudia Maia]

Quando alguém fala “ah, a sexualidade da pessoa com deficiência”, ou mesmo quando a gente comenta sobre sexualidade, está falando sobre isso, as pessoas vão “genitalizar”, que a gente fala, vão pensar na prática sexual, no sexo. Mas a sexualidade é muito mais ampla, envolve sentimentos, afetos, a própria libido, erotismo, e é uma coisa que tem a ver com a cultura, com a sociedade. Uma coisa é o corpo erótico responder aos estímulos eróticos, outra coisa é como a sociedade lida com isso, o que depende de representações de cada cultura, cada momento histórico.

Então mesmo que uma pessoa nunca faça sexo, uma freira, ela vai ser uma mulher, e aí entram as questões de gênero, ela vai ter sentimentos de amor e afeto, por alguém que ela cuide, por deus... Então a ideia de que essa expressão é humana, que os cachorros vão fazer sexo, mas não tem a dimensão humana, social basicamente. Então nesse sentido todo mundo tem sexualidade.

[Repórter - Flávia Nosralla]

Quando se trata de sexualidade e deficiência, a discussão geralmente é repleta de mitos e preconceito. Comumente a deficiência é encarada como empecilho ao cumprimento das exigências da vida contemporânea, ou seja, de que os indivíduos sejam rápidos, produtivos e rentáveis. Por conta disso, as pessoas com deficiência acabam sendo tratadas como incapazes ou são menosprezadas em relação aos demais sujeitos. Esse preconceito se mantém quando se trata da relação entre sexualidade e deficiência: os dois temas são tratados como opostos, pois se entende que a pessoa com deficiência não é capaz de viver a própria sexualidade.

A psicóloga Ana Cláudia Maia afirma que o desconhecimento leva muita gente a tratar a pessoa com deficiência como assexuada, como se a limitação física ou intelectual impedisse a fruição da afetividade, do desejo e do prazer.

Dessa forma, a sexualidade das pessoas com deficiência se torna um assunto do qual pouco se fala, pois é como se ele não existisse. Nas raras vezes em que ele é debatido no ambiente familiar ou coletivo, geralmente aparece envolto em ideias preconcebidas. A mitificação do tema dá o tom nas discussões, especialmente no caso da pessoa com deficiência intelectual: ou ela é vista como um indivíduo assexuado, ou como alguém que não tem controle sobre a expressão da sexualidade. Ambas as avaliações, porém, estão equivocadas, avalia a psicóloga Ana Cláudia Maia.

[Entrevistada - Ana Cláudia Maia]

Essa ideia dos mitos, são vários mitos, os dois grandes grupos de crenças que relacionam a sexualidade das pessoas com deficiência, fato, é esse antagonismo, ou as pessoas acham que é exagerado, que é exacerbado, principalmente no campo da deficiência intelectual, ou ele é assexuado, anjinho, angelical, como se toda criança fosse assexuada – o que não é verdade -, mas por eles serem ingênuos e independentes, eles também seriam ingênuos no campo da sexualidade.

[Repórter - Flávia Nosralla]

A deficiência intelectual pode alterar a maneira como a pessoa entende as normas e regras sociais. Essa diferença de compreensão do mundo acaba se refletindo na expressão da sexualidade, muitas vezes percebida como exagerada, fora dos padrões gerais de comportamento. Um exemplo dessa avaliação acontece com a pessoa com autismo.

O Transtorno do Espectro do Autismo reúne diversas síndromes relacionadas ao funcionamento intelectual. Ele é um transtorno de desenvolvimento que interfere na cognição, na maneira como a pessoa percebe o mundo e se relaciona com ele.

Isso acontece por conta dos órgãos sensoriais, que são os olhos, pele, língua, nariz e ouvidos. Os estímulos que eles recebem são percebidos de maneira mais intensa pela pessoa com autismo, o que pode desencadear crises de ansiedade.

A manipulação dos órgãos sensoriais, entre eles os sexuais, é um dos recursos usados pela pessoa com autismo quando lida com essas crises. O psicólogo cognitivo comportamental Lucas Xavier explica os possíveis comportamentos do indivíduo nesses casos.

[Entrevistado - Lucas Xavier]

Na verdade, a sexualidade se desenvolve desde o nascimento de todo mundo. No Transtorno do Espectro do Autismo, a dificuldade da sexualidade é porque o mundo interno é mais interessante do que o mundo externo. Quer dizer que ele é egoísta?, Não. É que todos os órgãos sensoriais vão provocar uma ansiedade nele e pode ser que ele desenvolva esse alívio de ansiedade pra sexo, pra masturbação.

[Repórter - Flávia Nosralla]

Por conta de todos os estigmas, mitos e preconceitos envolvidos na sexualidade da pessoa com deficiência, abordar o assunto com os filhos pode ser uma dificuldade para a família.

Em geral, lidar com a sexualidade dos filhos é um desafio para os pais porque, muitas vezes, eles não têm desprendimento sequer para falar das próprias questões sexuais. Dessa forma, acabam encontrando dificuldades na hora de externalizar seus pensamentos e conversar sobre afeto, autoestima e sexo.

Associando essa dificuldade aos estigmas que envolvem a deficiência, muitas vezes os pais ignoram a sexualidade dos filhos com deficiência. A questão geralmente está envolta em tabus, vergonha e preconceito, o que dificulta o diálogo e a compreensão das necessidades afetivas, eróticas e emocionais da pessoa com deficiência. Segundo a psicóloga Ana Cláudia Maia, todo o núcleo familiar é vítima de discriminação, o que dificulta ainda mais a abordagem da sexualidade com clareza e temperança. Ela reforça as ideias do sociólogo norte-americano ERVING GOFFMAN, para o qual a estigmatização não fica restrita a um único indivíduo.

[Entrevistada - Ana Cláudia Maia]

Primeiro, não negar. Uma coisa que o Goffman vai falar éo estigma de cortesia, a família toda é estigmatizada, então não é só a pessoa que tem deficiência, a família nossa é a família da pessoa com deficiência. Mesmo que eu não tenha uma deficiência, eu também sou julgado, avaliado, socialmente, como tendo “um problema”. Então a primeira coisa é entender que é uma marca social a deficiência em uma sociedade que você tem que produzir, ser rápido, tudo que exige da gente uma limitação pode dificultar, mas considerar isso e não negar.

[Repórter - Flávia Nosralla]

Para abordar o assunto, é importante que a família entenda e assuma que a sexualidade existe e tente dialogar com a pessoa com deficiência, tratando-a como um sujeito igual aos demais.

[Entrevistada - Ana Cláudia Maia]

E acho que dialogar. Porque, assim, muita gente acha que é um segredo, “não vamos falar sobre isso”. Eu escuto muito isso, “não vou falar sobre isso, nunca vai namorar, por que eu vou falar?”. Aí eu falo “por que ele nunca vai namorar”, “porque ele tem deficiência”, mas e o seu outro filho, vai namorar? É certeza? Namorar, casar, ser feliz pra sempre? Também não vai. Você pode desejar, mas você não sabe, porque eles acham que tudo acontece porque tem deficiência. Não arruma namoradinha porque tem deficiência. Tem muita coisa acontece que não tem nada a ver com a deficiência, mas é tudo generalizado, essa condição desvantajosa né. Então eu acho que trocar informação é importante, entre eles, falar com as pessoas que têm deficiência, os filhos, com os membros da família.

[Repórter - Flávia Nosralla]

Além do diálogo, é importante que os familiares estejam atentos para os próprios comportamentos cotidianos que negam ou desconsideram a sexualidade da pessoa com deficiência. Há certas situações em que fica claro que a sexualidade da pessoa não está sendo considerada, ainda que o assunto não tenha sido abordado diretamente. A psicóloga Ana Cláudia Maia dá um exemplo de situações que revelam isso.

[Entrevistada - Ana Cláudia Maia]

Tinha uma menina que eu conversei uma vez que ela falava assim: “minha mãe nunca chegou pra mim e disse ‘você não vai casar’, mas eu sabia que ela pensava isso porque ela fazia enxoval pra minha irmã, ela comprava tudo pra minha irmã”, nessa época antiga que tinha enxoval, ela me contava: “pra minha irmã se falava ‘quando você casar’, davam enxoval pra ela, e pra mim, nada”. Então não precisa dizer, mas a dessexualização acaba vindo nos sinais.

[Repórter - Flávia Nosralla]

A abordagem que parte da família é um importante aliado no combate ao tabu relacionado à sexualidade das pessoas com deficiência. Para aprender a lidar com a questão, os familiares podem procurar psicólogos e terapeutas que os auxiliem nesse processo. São comuns grupos de pais de pessoas com deficiência que falam sobre o tema, dão depoimentos e debatem, periodicamente, formas de abordar o assunto.

Fim da Entrevista

Em luta por direitos

A percepção dos tabus e das ideias falsas sobre a sexualidade das pessoas com deficiência tem levado muitos profissionais a atuar para que a experiência erótica e afetiva desse público seja a mais proveitosa possível e que os direitos dos indivíduos sejam respeitados.

A fisioterapeuta Paula Ferrari trabalha com a reabilitação sexual de pessoas com lesão medular há dez anos e revela que seu interesse nesta área surgiu quando fazia uma pós-graduação em um centro de reabilitação. A experiência permitiu-lhe perceber que muitos pacientes valorizavam outras coisas, por exemplo, o desempenho sexual após a deficiência, em vez dos objetivos tradicionais da terapia, como o treino de marcha. “Vi um dos meus pacientes apresentar um quadro depressivo devido a uma disfunção sexual e, consequentemente, piora na reabilitação”, conta.

O papel do fisioterapeuta é de importância fundamental no processo de reabilitação. Paula comenta que o profissional deve considerar o ser humano em todas as suas facetas: “ignorar a sexualidade é ignorar uma parte especialmente delicada e importante da reabilitação de um indivíduo, afinal, ela é parte da vida e tem uma grande influência no dia a dia”.

Além de trabalhar nesse processo, Paula também é cadeirante desde 2012. Ela teve mielite transversa, uma doença neurológica causada por uma inflamação na medula que lesionou a vértebra T5. Desde então, a fisioterapeuta utiliza muletas para caminhar por curtas distâncias e cadeira de rodas para percursos mais longos. “Inicialmente, foi como se tudo fosse voltar ao normal em breve. Acho que eu não acreditava muito no que estava acontecendo”, relata. Conforme o tempo foi passando, Paula foi-se dando conta da situação: “fácil não foi, mas acho que acabei enfrentando da melhor maneira possível”.

Assim como a fisioterapeuta, há muitas pessoas militando nas mais diversas áreas, como as do Direito, da Educação e da Saúde, para mudar o cenário de preconceito e mitificação em torno da sexualidade das pessoas com deficiência. Um exemplo é a empresária e bacharel em Direito Márcia Gori, ex-Presidente do Conselho Estadual Para Pessoas com Deficiência de São Paulo. Ela atua como colunista na Revista Reação, no site Tudo para PcD e no blog Inclusão Também É Moda, é palestrante sobre sexualidade, deficiência e inclusão e também trabalha como modelo fotográfica na Agência Kica de Castro Fotografias, exclusiva para pessoas com deficiência. Márcia é cadeirante devido à poliomielite, que a acometeu quando tinha nove meses de idade.

A percepção de que não se tem acesso satisfatório à informação sobre sexualidade despertou nela o interesse pelo tema. “Às vezes, até a própria pessoa com deficiência não sabe nada da própria vida sexual e o que acontece é que ela fica refém, fica sem informação, e é onde pode engravidar sem querer, contrair doenças”, pondera. A empresária explica que a atuação familiar contribui para esse isolamento, pois “a própria família esconde [a pessoa com deficiência e sua sexualidade]. Não todas [as famílias], mas a maioria”. Segundo ela, os pais geralmente não querem que o filho se relacione, que tenha uma vida sexual ativa, que se case, tenha filhos. “Então essa pessoa fica meio fora da realidade, à mercê de outras. Foi por isso que resolvi começar a falar sobre o assunto. Levando informação, a gente inibe muita coisa errada”, defende.

A palestrante optou pelo uso da cadeira de rodas para ter mais mobilidade. Quando usava aparelho tutor e muletas axilares, costumava andar muito devagar e eventualmente caía, machucando-se de maneira séria. “Busquei a segurança da cadeira para poder sair e comecei a ter uma vida muito mais ativa, ir para tudo quanto é lugar, frequentar shopping, viajar. A cadeira me deu uma mobilidade maior e melhor”, comenta a empresária.

Participando ativamente do movimento pelos direitos das pessoas com deficiência, em especial no campo da sexualidade, Márcia Gori fundou a Organização Não-Governamental Essas Mulheres. A ONG atua com mulheres com deficiência, desenvolvendo atividades de assistência social voltadas para elas, defendendo seus direitos e auxiliando-as a recomeçarem quando são vítimas de violência sexual, psicológica ou doméstica.

A ideia da ONG era “um verdadeiro sonho”: dentro da luta das pessoas com deficiência, avaliava que os direitos da mulher não eram objetivamente debatidos, por isso Marcia trabalhou, durante seis anos, para que a Essas Mulheres fosse criada. “Muitos falaram para mim que eu estava querendo fracionar o segmento, que deveríamos permanecer todos juntos”, conta ela, que não se importou e seguiu em frente. Hoje, a ONG é formada por feministas. “Temos em mente que é necessário capacitar essas mulheres, empoderá-las, dar seu poder de ser humano, de cidadã, de mulher com deficiência”.

Márcia afirma que a sexualidade da mulher com deficiência “é muito abusada”, daí a importância de se criar uma frente de luta. “Ela [a mulher com deficiência] sofre estupro, não fala, apanha, sofre violência, fica quieta, porque ela sabe que, se abrir a boca, pode sofrer situações de represália muito maiores”. Márcia conta que, muitas vezes, a violência vem de pessoas próximas, do próprio cuidador, por isso é essencial levar informações adiante e mostrar às mulheres que elas podem denunciar os abusos.

A empresária comenta que é preciso trabalhar cada caso com cuidado. Muitas deficiências exigem que haja um(a) cuidador(a) para a realização de atividades básicas do cotidiano, como ir ao banheiro, trocar de roupa, tomar banho e sentar na cadeira de rodas. “Se a gente tirar essa mulher de casa, afastá-la do agressor ou da agressora, onde iremos colocá-la? Os abrigos têm acessibilidade, têm cuidadores? Como você vai tirar uma pessoa assim de perto de quem cuida dela?”, questiona. “São políticas públicas sobre as quais temos que trabalhar muito, modificar conceitos, visões, pensamentos e posturas da nossa sociedade”.



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Fotografia em plano retrato. Flávia é uma moça de 22 anos, pele branca bronzeada, cabelos pretos lisos compridos na altura do peito. Ela sorri, usa uma blusa preta com brilhos dourados e batom vermelho. Atrás dela, há um fundo branco.

FLÁVIA NOSRALLA

Reportagem | Redação | Edição

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SUELY MACIEL

Coordenação Geral

suelymaciel@faac.unesp.br

CONSULTORIA

Ana Raquel Mangilli

Daniel Ribas

Lana Pacheco

Ivan Siqueira Reis

FOTOGRAFIA

Kica de Castro

LOCUÇÃO

William Orima

ANIMAÇÃO

Lucas Loconte


UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" - UNESP

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO - 2016