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JUST THE WAY YOU ARE*

Foto em preto e branco mostra uma mulher de aproximadamente 40 anos, branca, olhos pretos e cabelos pretos lisos compridos na altura do peito. Ela sorri com os lábios cerrados, está nua, sentada sobre um pano xadrez com as pernas levemente arqueadas na altura do joelho. Ela está com os braços junto ao corpo, tampando os seios e entrelaçando os fios de cabelo por entre os dedos das mãos. Seu corpo está de perfil em relação à câmera e sua cabeça está virada na direção da foto. Ela está focada em segundo plano e, em primeiro plano, há alguns desenhos brancos desfocados da cabeça de um tigre e arabescos.
Valdireny Mira tem Osteogênese Imperfeita, popularmente conhecida como “ossos de vidro”.
Foto: Kica de Castro, Exposição “Além das Convenções”.
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SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA

Fotografia em preto e branco de plano médio de uma mulher de aproximadamente 40 anos, branca, cabelos pretos lisos compridos. Ela veste um sutiã, está deitada em cima de uma cama, apoiando a cabeça sobre a roda de uma cadeira de rodas que está dobrada também em cima da cama. Seus cabelos estão soltos, jogados para cima e ela segura o aro propulsor da cadeira com as mãos, deixando os braços para cima da cabeça. Ela aparece na parte direita da foto, com a cabeça no centro da imagem.

RELACIONAMENTOS

Foto em preto e branco mostra um casal de aproximadamente 30 anos. A mulher é branca, de cabelos pretos lisos compridos, usa vestido com renda e sapato de salto. Ela está sentada no chão de perfil, com as pernas esticadas e a perna esquerda cruzada por cima da perna direita. Ela sorri, com a cabeça virada para o lado, na direção da câmera. Atrás dela, há um homem branco, de cabelos pretos ondulados na altura da orelha, vestindo camiseta de manga curta, bermuda preta com listras brancas na lateral e tênis esportivo. Ele usa próteses nas duas pernas. Está ajoelhado sobre a perna esquerda e mantém a perna direita esticada, de forma que a sola do seu tênis está em primeiro plano. A mão direita está sobre a coxa da perna esticada e ele apoia a mão esquerda no chão, atrás da moça, inclinando seu corpo em direção a ela, sorrindo.

SEXO

Foto em preto e branco mostra um casal de aproximadamente 30 anos. A mulher é branca, de cabelos loiros compridos. Ela está deitada com a lateral esquerda do corpo apoiada ao chão, de forma que a câmera, que também está na altura do chão, visualiza seu corpo de frente. Ela está nua, mas os seios e o baixo ventre estão cobertos por um pano preto de caveiras brancas, simulando uma blusa curta e uma saia. Sua cabeça está apoiada na perna direita de um homem, suas mãos tocam o joelho dele e ela está com a cabeça virada para cima na direção dele. O homem é branco, tem cabelo curto preto, barba e cavanhaque pretos. Ele está sem camisa, sentado atrás dela e apoia a mão direita no chão, passando o braço pela frente do corpo dela. A mão esquerda acaricia os cabelos da moça. Ele está inclinado em direção ao rosto dela e os dois se olham; ela sorri. Atrás deles, há uma cadeira de rodas.

REPRODUÇÃO

Foto em preto e branco mostra uma mãe dando mamadeira ao filho bebê. Em primeiro plano, vê-se o detalhe do rosto de uma mulher de aproximadamente 30 anos, pele branca, olhos pretos, cabelos pretos lisos curtos. Seus olhos delineados por um lápis preto. Em segundo plano, desfocado, vê-se a mão direita da mulher levando uma pequena mamadeira com leite à boca de um bebê recém-nascido. O bebê está envolto em uma manta branca.

A base da vivência sexual está na relação consigo mesmo e no entendimento de que dá para ser incrível sendo exatamente quem você é


*”Exatamente como você é”. Música lançada por Bruno Mars em 2010. Clique aqui para acessar.


O

comportamento sexual é resultante de uma série de fatores que se inter-relacionam, como características biológicas, identidade de gênero e socialização. A autoestima faz parte dessa experiência ampla chamada sexualidade e é essencial para que esta seja vivenciada de maneira satisfatória. Diretamente relacionada à avaliação que o sujeito tem de si mesmo, a autoestima decorre da análise das virtudes e fraquezas que o constituem e do modo como ele se relaciona com cada uma de suas características. Ela perpassa também o desenvolvimento psicológico de cada indivíduo e atua na forma como ele interage com as outras pessoas.

O sentimento de segurança em si próprio, por exemplo, está associado à autoestima elevada, pois o sujeito está ciente das capacidades que tem e reconhece as próprias virtudes. A confiança e o amor próprio auxiliam na vivência em sociedade e no momento de estabelecer relações com outras pessoas.

A frase pode ser clichê, mas é verídica: “se você não gostar de si mesmo, quem irá?”. Dessa forma, há diversos fatores que influenciam positiva e negativamente a autoestima, tais como a compleição física, os valores cultivados no meio familiar e os padrões estéticos e de comportamento propagados socialmente. Assim, apresentar uma deficiência física, sensorial ou intelectual pode ter reflexos diretos na construção do amor próprio.

Ao longo da história da humanidade, a deficiência foi tratada como fator decisivo para a permanência ou não de um indivíduo no meio social, conforme aponta o autor Otto Marques da Silva, no livro Epopeia Ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de hoje. Os hebreus, por exemplo, acreditavam que as deficiências físicas e intelectuais estavam relacionadas à “impureza” ou ao “pecado”, por isso, as crianças que nasciam com essas características eram abandonadas ou mortas. Na Roma Antiga, também os pais de filhos com deficiência podiam escolher entre deixar o bebê à margem de um rio ou executá-lo. Nesse cenário de violenta rejeição, os que conseguiam sobreviver acabavam sendo marginalizados, muitas vezes tendo a mendicância como única forma de subsistência.

Esse comportamento ancestral revela que a deficiência era interpretada como um fator de limitação definitiva, de forma que, se o sujeito nascesse com ela ou a adquirisse ao longo da vida, simplesmente deixava de ser útil para a sociedade, daí sendo justificada sua exclusão ou extinção. Tal compreensão foi se modificando com o decorrer do tempo e hoje há uma maior aceitação das pessoas com deficiência no meio social, sendo que, em alguns países, elas estão completamente integradas às demais. Ainda assim, numa contemporaneidade em que o ritmo da vida é marcado pela velocidade acelerada e pela competição, exigindo dos indivíduos cada vez mais capacidade, produtividade e rentabilidade, a deficiência se torna uma característica incompatível com o que se espera, haja vista que algumas condições físicas e intelectuais demandam outra lógica, mais lenta e serena, para a realização das atividades cotidianas.

Esse descompasso entre expectativas e reais condições de vivência acaba tendo efeito direto na autoaceitação da pessoa com deficiência. O processo de se conhecer e saber lidar com as próprias características, pelo qual todas as pessoas passam, é dificultado pelo olhar preconceituoso da sociedade para com o sujeito com deficiência.

Fotografia de uma menina de aproximadamente 10 anos de cabelos cacheados. Ela está com as sobrancelhas franzidas e a boca entreaberta. A foto foi editada com um filtro azul, de modo que toda a imagem está azulada.



“Você fala ‘olha, ela faz isso, faz aquilo, apesar de ser deficiente’, esse ‘apesar’ machuca, ele tira o nosso valor como pessoas”.

Luísa, estudante




“Pensam que a gente vale menos por causa de uma limitação física ou sensorial”, comenta a estudante universitária Luísa*. Ela nasceu prematura e os médicos avaliaram que não era preciso colocá-la na incubadora. A falta de oxigênio decorrente dessa decisão destruiu algumas células ciliadas da cóclea, resultando na perda da audição, além de ter acarretado sinapses superaceleradas que causam descoordenação física. A estudante comenta que, ao passo que se entende a deficiência como um impeditivo, a pessoa com condições especiais é subestimada. “Você fala ‘olha, ela faz isso, faz aquilo, apesar de ser deficiente’, esse ‘apesar’ machuca, ele tira o nosso valor como pessoas”, reitera Luísa.

A crença de que a deficiência torna o indivíduo incapaz se reflete ainda hoje quando as famílias dessas pessoas as excluem do convívio social, não atribuindo importância para a interação com outros indivíduos. Em cidades pequenas, é ainda mais comum que pessoas com deficiência permaneçam “escondidas” dentro de casa, ou convivam apenas em instituições especializadas em seu atendimento, não sendo incluídas, de fato, nas atividades da vida em sociedade.

Além de privar a pessoa com deficiência do mundo exterior, essa atitude de isolamento faz com que as demais não saibam como é conviver com alguém que tem uma limitação física, sensorial ou intelectual. É como se existisse uma espécie de 'ser imaginário', que pouco aparece ou, até mesmo, nem existe, e sobre o qual não se conversa.

Por isso, no momento em que os grupos sociais são levados a conviver com a pessoa com deficiência, tendem a tratá-la ora com espanto, como a um estranho, ora com piedade, como se fosse alguém digno de dó. Não se aprende, portanto, a lidar com a diferença e a compreender as necessidades do outro, o que leva a pessoa com deficiência a ter que se adaptar a uma sociedade que não está apta a recebê-la.

O preconceito com a condição física de Luísa* foi um obstáculo para o fortalecimento da autoestima da estudante, pois, além da 'real', ela tem de conviver também com uma espécie de deficiência 'imaginária', fruto do desconhecimento das pessoas.

O cérebro da jovem realiza sinapses superaceleradas que provocam a descoordenação do movimento. Em um corpo humano com desenvolvimento típico, o movimento se dá por um estímulo que contrai os músculos agonistas e relaxa os antagonistas ao mesmo tempo. No caso de Luísa, porém, essa sincronia não ocorre, pois os dois grupos musculares têm a mesma reação: ou ambos tensionam ou distendem. Além disso, as contrações alteram a voz de Luísa. Essas características levam muita gente a pensar que a estudante tem outro tipo de deficiência que não a física e a auditiva, pois é comum que se associe a falta de coordenação motora com uma possível deficiência intelectual. “Esse também é um estereótipo que toda pessoa com distúrbio de movimento enfrenta. Você chega a um lugar e todo mundo vira a cabeça que nem a menina do [filme] Exorcista, pra te encarar. É assim desde que eu era pequena”.

Fotografia de frente uma mulher de cabelos curtos, na altura do queixo, e franja, franzindo as sobrancelhas e apontando um dedo para a câmera. Sua mão está focada em primeiro plano e seu rosto aparece desfocado ao fundo. A foto foi editada com um filtro azul, de modo que toda a imagem está azulada.


“Esse também é um estereótipo que toda pessoa com distúrbio de movimento enfrenta. Você chega a um lugar e todo mundo vira a cabeça, que nem a menina do [filme] Exorcista pra te encarar. É assim desde que eu era pequena”.

Luísa*, estudante




Luísa sempre foi dedicada aos estudos e estimulada a desenvolver a sua inteligência. A associação dessa característica à deficiência física fez com que ela se identificasse “como a inteligente, como a nerd, como qualquer coisa, menos como mulher”. Essa combinação de fatores levou Luísa a “criar muros” ao seu redor. “Em cada tentativa de me socializar, se algo desse errado, eu me fechava cada vez mais”, recorda. A autoaceitação tardou a acontecer, mas foi facilitada pelo ingresso na universidade. “Pude ter contato com diversas mentalidades, com valores diferentes e isso me abriu totalmente”, revela.

Mesmo assim, a estudante explica que nem todas as pessoas “têm paciência” para as dificuldades de fala e de audição que ela possui. Pela internet, no entanto, essas possíveis barreiras desaparecem. Segundo ela, “dá tempo de a gente desenvolver afinidade, de interagir melhor antes de partir para o contato face a face”. A estudante universitária tem preferência em conhecer pessoas pela rede primeiro e só depois buscar contato pessoalmente.

Luísa relata que a interação virtual também é preferência de algumas pessoas com deficiência auditiva como forma de vencer a dificuldade comunicacional, resultante da perda de audição e agravada pela “barreira do preconceito”. A estudante explica que “a partir do momento que a pessoa conhece alguém, começa a interagir com ela para só depois descobrir a deficiência, vai ter tempo para refletir e ver que a deficiência não a impediu de se interessar pelo outro”.

O fato de não conseguir compreender o que as outras pessoas falam é um fator de estresse para a recém-formada em Arquitetura e Urbanismo Jéssica, (que preferiu não identificar seu sobrenome). Ela tem perda auditiva de severa a profunda, processo que se iniciou quando estava com 14 anos, provavelmente, por causas genéticas. Alguns anos depois, Jéssica começou a usar próteses nos dois ouvidos, mas o direito não se adaptou e hoje o uso se restringe ao esquerdo.

A jovem relata que a deficiência auditiva afetou sua autoestima durante a adolescência. “Eu me estressava bastante e evitava conversar ou sair [de casa], para não passar pela angústia de não entender as coisas”. Uma década após o início da perda auditiva, ela aprendeu a lidar melhor com a situação, mas se sente abalada “quando ocorre algo como preconceito”, ou se sente frustrada em uma situação na qual não consegue ouvir com clareza. A maneira de extravasar o descontentamento é simples: “fico xingando mentalmente quem me faz essas coisas e só”, brinca, “porque geralmente são situações de interação com outras pessoas em que ocorre algo do tipo”.

A dificuldade de compreensão sonora também era motivo para a arquiteta evitar alguns rapazes. “Se alguma pessoa tinha a voz muito difícil de entender para mim, de certa forma parecia que a possibilidade de ter um relacionamento minava logo no primeiro encontro”, explica. Quando ficava pela primeira vez com um rapaz e ouvia muito mal a voz dele, a dificuldade a desmotivava e, por isso, ela geralmente não programava um próximo encontro.

O estudante de Direito Rodrigo Moitinho, por sua vez, afirma que a deficiência auditiva pouco interferiu na sua autoestima. Ele começou a perder a audição do ouvido esquerdo aos oito anos, mas o uso do aparelho auditivo só se deu por volta dos 16, quando os assuntos estudados no colégio se tornaram mais complexos e a dificuldade de audição prejudicava a compreensão dos conteúdos. O estudante usa um aparelho auditivo pequeno e discreto que custou R$ 6 mil. A perda do ouvido esquerdo é leve e o direito não foi comprometido. “O direito é meu ouvido do 'telefone celular' e eu mesmo só fico do lado esquerdo da pessoa quando estou andando” conta.

Hoje com 22 anos, Rodrigo iniciou seus relacionamentos amorosos por volta dos doze anos, quando começou a “ficar com meninas”. Segundo ele, a deficiência não se mostrou um impeditivo. “Depois do uso do aparelho, algumas [meninas] passaram a ter atenção, outras achavam fofo ou até não o percebiam devido ao pequeno tamanho. Só vinham a perceber quando passavam a mão atrás da minha orelha ou ouviam o aparelho apitar”. O sinal emitido pelo aparelho auditivo é uma espécie de microfonia que se dá quando há algum tipo de interferência, como a mão passando pela região da orelha, que impede a entrada de som no microfone.

De acordo com Rodrigo, a namorada ― com quem ele está há três anos ― também não percebia a deficiência e reagiu com surpresa quando a descobriu, mas isso nunca os impediu de fazer nada. “Se eu não entendia ou não ouvia alguma coisa, pedia para ela repetir, nada além disso”, explica o estudante. Ele garante que a deficiência não é um problema para os relacionamentos: “não sou tratado diferente. Só falo que tenho deficiência quando há necessidade, e é aí que passo a ser tratado de outra forma (risos)”.

Início do Vídeo

“Fora da Cama - Realização sexual envolve afeto, amor e autoestima”

Fim do Vídeo

Padrões para quem?

Os meios de comunicação em geral, principalmente os tradicionais, contribuem para que as deficiências sejam pouco expostas e colocadas em debate. Basta ligar a televisão e, surpresa!: ninguém com deficiência. Nas produções audiovisuais, como no jornalismo, na teledramaturgia ou no entretenimento, são raros os protagonistas com deficiência. Ficar fora da mira dos holofotes faz com que, além de não se verem representadas, as pessoas com deficiência não sejam vistas pelos demais indivíduos, o que, novamente, reforça o estranhamento.

Muitas vezes, o que acontece na dramaturgia pode agravar esse cenário: pessoas sem deficiência são chamadas para interpretar um personagem que tenha deficiência. A pergunta que fica é: por que não contratar as próprias pessoas com deficiência para serem intérpretes de personagens que têm características iguais às delas? Por trás dessa exclusão, subentende-se que não são capazes de ocupar tais funções, o que não é verdade. As condições físicas ou intelectuais não desabilitam os sujeitos a trabalharem nos veículos de comunicação, mas aposto que você conta nos dedos das mãos as pessoas com deficiência que atuam no meio e, menos ainda, as que têm projeção.

Nas produções televisivas, geralmente os indivíduos que ocupam os postos de repórter, âncora, apresentador animador ou protagonista de novela estão conformes ao padrão hegemônico de beleza, ou seja, de pele branca, corpo magro e sem deficiência. Diante deste enquadramento rígido, torna-se difícil enxergar encanto no membro amputado, nos ossos com malformação, nas pernas atrofiadas, nos movimentos descoordenados. Isso faz com que, além de não se verem representadas, as pessoas com deficiência sejam diuturnamente colocadas frente a um padrão de beleza para elas inatingível.

Segundo a estudante Luísa, a visão preconceituosa dominante na sociedade, segundo a qual “a composição dos nossos corpos é uma barreira para a atração”, normalmente interfere nas relações afetivas que as pessoas com deficiência vivenciam. Ela conta que um rapaz do qual gostava acabou admitindo que não se sentia atraído por causa dos movimentos dela. Não é preciso ligar a televisão para se deparar com essa ideia restrita e preconcebida de beleza, a tal ponto arraigada no meio social que até indivíduos habituados a conviver com a deficiência não conseguem enxergar a diversidade e respeitá-la. “Tenho amigas que viram minha foto e falaram ‘você é bonita, mas se você fosse menos torta, você seria mais bonita ainda!’”, relata Luísa, que se diz extremamente incomodada com esse tipo de afirmação. “Nossa, eu fiquei revoltada com aquilo! Minha própria amiga falar isso para mim! Eu não sou torta, é a posição em que eu fico. E, mesmo que fosse torta, mesmo que eu tivesse uma deformação, não quer dizer que eu não seria atraente”, critica.

A jovem conta que já conheceu outros rapazes com o mesmo distúrbio de movimento que ela e que se sentiu atraída por eles: “é como qualquer outro tipo de característica, depende da visão de cada um”. Atualmente, Luísa diz estar aprendendo que “o problema é da pessoa preconceituosa” e não da sua compleição física. Ela reitera que “a atração é uma coisa humana, variável, não é para ter um padrão, uma medida de valor que fale que uma pessoa é menos atraente que a outra. Isso é uma injustiça enorme”.

À parte a estreiteza dos padrões estéticos e comportamentais que os reforçam, os meios de comunicação também demonstram insensibilidade e inépcia ao não se atentar para o significativo público ou profissionais em potencial com deficiência. Afinal, são cerca de 45 milhões de brasileiros com alguma deficiência, segundo o último Censo Demográfico do IBGE, de 2010. Apesar disso, há quem perceba, nesses quase 25% da população, um mercado latente, pronto para ser conquistado.

Foi tirando fotos, com fins científicos, de pessoas com deficiência física, em um centro de reabilitação, que a fotógrafa Kica de Castro teve a ideia de um trabalho que seria pioneiro. Formada em Publicidade e Propaganda, mas amante da fotografia desde cedo, fazia seu trabalho como mandava o figurino, tirando fotos que, por seu caráter técnico e não-artístico, eram “extremamente frias”, como ela mesma avalia.

Kica percebeu que essa impessoalidade do trabalho mexia com a autoestima dos fotografados, pois as imagens, incorporadas posteriormente a estudos científicos, eram feitas sem nenhum tipo de cuidado prévio com aparência deles, os quais se limitavam a segurar, seminus, uma placa com identificação. A fotógrafa resolveu dar um pouco de vida ao processo, levando espelho, maquiagem e bijuterias para o estúdio, “só para dar cinco minutos de vaidade para a pessoa antes das fotos”.

Fotografia de uma câmera da marca Canon, segurada pelas mãos de uma pessoa. A foto foi editada com um filtro azul, de modo que toda a imagem está azulada.



“No começo, muitas pessoas, incluindo as com deficiência, só me viam como louca, mas hoje sou a ‘visionária’”.

Kica de Castro, fotógrafa




A mudança surtiu efeito: as fotografias, antes encaradas como uma experiência desagradável por boa parte dos retratados, passaram a estimular a autoestima dos pacientes, os quais começaram a procurar a publicitária com vontade de serem modelos fotográficos. Kica, então, indicava outros profissionais e agências, mas não demorou muito a perceber que ela mesma poderia criar a sua empresa de modelos com deficiência. “No começo, muitas pessoas, incluindo as com deficiência, só me viam como louca, mas hoje sou a ‘visionária’. No Brasil, fui a primeira [nesse ramo] a trabalhar com pessoas com deficiência e faço questão que o casting seja 100% de profissionais com alguma deficiência”, afirma.

Os bons frutos do trabalho não são apenas para quem está nas fotos, mas também para outras pessoas com deficiência. “Imagine você vendo uma foto [de uma pessoa com deficiência], em uma exposição, como referência de beleza, numa sociedade para a qual só existe um padrão estético. As pessoas estão ali reconhecendo o seu lado belo, sem prejulgar nada. Isso é o máximo para as pessoas com deficiência”, avalia a fotógrafa.

A Agência Kica de Castro Fotografia, pioneira no ramo, foi criada em 2007, com apenas cinco modelos. Quase uma década depois, tem uma equipe de 86 profissionais, em todo o território nacional, que buscam mercado de trabalho para artes cênicas, modelos fashions e comerciais, todos com algum tipo de deficiência. A fotógrafa ressalta, porém, que só ingressa na agência quem tem talento, sabe desfilar e se portar como modelo: “para ser do casting, é obrigatoriamente necessário passar por teste e avaliação do perfil profissional, pois estamos falando de um mercado de trabalho”. Segundo ela, não basta ser pessoa com deficiência, pois é preciso ser capacitado para a atividade. “Aqui não passamos a mão na cabeça de ninguém”.

Com quase dez anos de experiência no ramo, Kica avalia que geralmente é difícil para a pessoa com deficiência aceitar o próprio corpo, “com a mídia, a cada cinco minutos, falando que tem que ser alto e magro para ser bonito”. Com o trabalho que realiza, ela diz que busca contribuir para que esse cenário se modifique. “Ficamos cansadas de tanto blábláblá e estamos fazendo a nossa parte: fazendo as fotos sensuais com a intenção de mostrar que beleza e deficiência não são palavras opostas”.

A última exposição de Kica, Além das Convenções, foi realizada no Conjunto Nacional, em São Paulo (SP), em dezembro de 2015, e apresentava nu artístico de nove mulheres com deficiência. Cerca de 45 mil pessoas circularam entre as fotos durante as duas semanas da mostra. O objetivo, segundo a fotógrafa, era de sensibilizar as pessoas para “aceitarem o corpo como ele é, como referência de beleza, mostrando que existe sensualidade e, acima de tudo, a sexualidade”.


Foto em preto e branco mostra uma mulher de aproximadamente 30 anos, negra, de olhos pretos e cabelos cacheados pretos presos atrás da cabeça, com algumas mechas soltas. Ela está nua, deitada no chão de barriga para baixo. Seu tronco está levemente erguido com os cotovelos dela apoiados no chão. Ela encosta a lateral da cabeça na mão direita e olha sorrindo para a câmera, que está à sua frente. Ao fundo, percebe-se sua perna esquerda amputada na altura do joelho apoiada ao chão e uma cadeira de rodas atrás dela.
Diolice Barbosa tem tetraplegia e participou como modelo na exposição “Além das Convenções”, promovida por Kica de Castro.
Foto: Kica de Castro.

Os desafios do amor próprio

Diante dos padrões 'midiáticos' de beleza e da falta de representatividade, é natural que a pessoa com deficiência tenha sua autoestima afetada negativamente quando está em situações de convívio e interação com outros indivíduos. O entendimento sobre si próprio e a capacidade de lidar com as implicações decorrentes da deficiência são tópicos significativos quando se nasce com ela ou a adquire tardiamente.

A estudante de Arquitetura e Urbanismo Fernanda Santana, por exemplo, conta que o estranhamento a acompanhava já na infância: “desde criança, percebia coisas diferentes em mim mesma quando me comparava com os outros e tive problemas com depressão durante a adolescência, mas levei muito tempo para descobrir o motivo. Simplesmente, não entendia qual o problema ou como lidar com ele”. Ela foi tardiamente diagnosticada, aos 20 anos, com a Síndrome de Asperger, uma das que integram o Transtorno do Espectro Autista. De acordo com a quinta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM-5), de 2013, as características substanciais da síndrome são o interesse exacerbado em certos assuntos durante um período de tempo e dificuldades de comunicação. “Hoje eu já não a vejo como o problema, mas não saber e não se entender é definitivamente complicado”, comenta Fernanda.

As deficiências adquiridas durante a vida modificam a maneira como o sujeito se relaciona com o mundo ao seu redor. As chamadas deficiências sensoriais, que afetam a visão e a audição, alteram a percepção da realidade, atuando diretamente na comunicação do indivíduo com os outros. Já as deficiências físicas podem ter efeitos na mobilidade de quem as adquire. Geralmente, é preciso reaprender a lidar com tarefas simples do cotidiano que, antes, não exigiam atenção, mas que passam a demandar mais tempo para serem executadas, como tomar banho, trocar de roupa e ir ao banheiro. Esse processo de adaptação às novas demandas do corpo ou do intelecto pode demorar a ser naturalizado pela pessoa com deficiência, levando, muitas vezes, à depressão.

Início da Entrevista

A imagem mostra a caricatura do rosto de um homem adulto, de pele negra, cabelos pretos curtos, bigode e cavanhaque pretos. Seus olhos são totalmente brancos, não sendo possível distinguir sua pupila. O rosto está levemente inclinado para a direita, uma luz branca incide sobre seus olhos e, atrás dele, há um fundo cor de rosa.

As mudanças na autoestima provocadas pela deficiência visual

Perda da visão interfere de forma direta na avaliação que o indivíduo tem de si mesmo; alunos do Lar Escola Santa Luzia para Cegos de Bauru comentam a questão

Leia o áudio completo aqui!

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As mudanças na autoestima provocadas pela deficiência visual


[Repórter - Flávia Nosralla]

A autoestima é um fator importante no desenvolvimento da sexualidade de uma pessoa. Ela se caracteriza pela avaliação que cada um tem de si mesmo. Isso depende bastante de autoconhecimento, de uma pessoa saber quem ela se tornou, quais aptidões, virtudes e fraquezas fazem parte dela.

Quem tem deficiência congênita, ou seja, já nasceu com uma deficiência, irá desenvolver a própria autoestima levando em consideração esta característica, entendendo que ela é parte da sua constituição como pessoa. Entretanto, adquirir uma deficiência física, intelectual ou sensorial ao longo da vida pode ter um efeito negativo em relação à autoestima, trazendo sensação de inferioridade perante as demais pessoas.

A psicóloga Ana Cláudia Maia é especialista no estudo sobre a sexualidade das pessoas com deficiência e considera que a autoestima dos indivíduos é afetada diretamente pela deficiência.

[Entrevistada - Ana Cláudia Maia]

Não afeta tanto a resposta sexual, mas afeta muito o estereótipo, “eu sou uma pessoa com deficiência”, o que é isso numa sociedade que estimula a beleza, padrão fascista de estética e tudo mais. É uma competição desigual, principalmente para as mulheres, mas os homens também falam muito isso, eles são muito preocupados com a estética também, é uma ilusão a gente achar que só atinge as mulheres.

[Repórter - Flávia Nosralla]

Aprender a lidar com a deficiência é uma tarefa difícil, já que a perda de um dos sentidos pode ter efeitos diretos no psicológico da pessoa, trazendo distúrbios como depressão e ansiedade.

As deficiências visual e auditiva são chamadas de sensoriais e interferem na percepção de mundo. A deficiência visual, por exemplo, muda a referência que a pessoa tem sobre o ambiente no qual ela vive e a forma como interage com ele.

O pintor Valdir Antônio Rodrigues é casado e tem quarenta e oito anos. ele começou a perder a visão em 2012, por causa de Diabetes. Atualmente, Valdir não enxerga mais e a deficiência alterou sua maneira de estar e agir no mundo.

[Entrevistado - Valdir Antônio Rodrigues]

Eu me sinto um pouco abaixo das outras pessoas, entende, a gente se diminui diante das pessoas que tão normal, e isso mexe com o sistema da gente completo. A gente se sente menor, acha que é diferente, e isso leva um tempo até voltar à realidade. Pra dizer a verdade, a gente se sente um pouco ainda assim, um pouco indigno de estar aqui. Apesar que isso é um pouco da cabeça, mas mexe sim.

[Repórter - Flávia Nosralla]

Mesmo sentimento teve a aposentada Fermina Mendes, de cinquenta anos, que sofreu um acidente de carro quase vinte anos atrás e perdeu completamente a visão.

[Entrevistada - Fermina Mendes]

Minha cabeça ficou muito confusa, eu fiquei muito depressiva, não sabia o que fazer. Eu me sentia uma pessoa lá embaixo mesmo, sem autoestima em nada. Mas, a partir do tempo, foi levando, indo, indo, e eu fui... acostumar não vou dizer que eu me acostumei porque a gente não acostuma com isso né, a gente faz de conta que acostumou. Que é difícil é, mas hoje eu já levo minha vida sossegado, mas foi difícil no começo.

[Repórter - Flávia Nosralla]

Às vezes, a perda da visão leva a uma maior preocupação com a aparência física. A cegueira alterou, por exemplo, o modo de vida de Fermina e sua percepção sobre o próprio corpo.

[Entrevistada - Fermina Mendes]

No começo, quando eu enxergava ainda, eu não ligava muito pra arrumar cabelo, porque meu negócio era trabalhar, cuidar dos meus filhos, mesmo morando sozinha com eles, era só trabalhar, minha vida era essa. Não tinha tempo nem pra namorar (risos). Mas depois do acidente, eu comecei a pensar né, passava a mão no cabelo, sentia rebelde, meu cabelo não era liso, era cacheado, aí achava o cabelo rebelde. Aí um dia eu cheguei na minha sobrinha e perguntei, “o que eu posso fazer com esse cabelo assim¿” Uma progressiva. Aí eu peguei e já comecei a arrumar cabelo, aí fui gostando, agora não, agora minha autoestima está lá em cima. Não gosto de sair desarrumada mais.

[Repórter - Flávia Nosralla]

Fermina e Valdir frequentam o Lar Escola Santa Luzia Para Cegos De Bauru. A instituição auxilia pessoas com deficiência visual a adaptarem suas vidas à nova condição.

Fim da Entrevista

A princípio, a estudante universitária Paolla (que prefere não identificar o sobrenome), agiu com otimismo em relação ao acidente que lesionou sua medula. Durante uma festa de casamento, em 2013, ela estava no segundo andar de um hotel, quando pisou em um chão de acrílico: era a claraboia do andar de baixo. O piso se rompeu e Paolla caiu de uma altura de, aproximadamente, cinco metros, rompendo a quinta vértebra, na altura do pescoço. Após uma cirurgia e nove dias de internação no hospital, ela passou um mês na cama hospitalar, dentro de casa, sem os movimentos do pescoço para baixo.

Paolla conta que a família e os amigos ficaram surpresos com a positividade que ela demonstrava. “Assim que sofri o acidente, eu fui muito positiva, era motivada, super pra cima, não me deixei abater. Fiquei vários meses assim, todo mundo se surpreendeu comigo, fui bem forte no começo”.

O início da reabilitação após a cirurgia, com fisioterapia intensiva, era de resultados constantes, sendo que, a cada dia, Paolla ganhava um movimento novo. Com o tempo, porém, o progresso foi se tornando mais lento e o alto astral, ficando para trás... “Depois que foi cessando a recuperação, o bicho pegou porque caiu a ficha de que essa situação podia ser para sempre”. A jovem foi diagnosticada então com Transtorno de Estresse Pós-Traumático, que tem a depressão como um dos sintomas. “Não tem como não mexer com o psicológico, minha vida mudou completamente. Passei uma época meio triste, não conseguia comer, emagreci. Mas agora estou melhorando de novo, fazendo academia, engordando”.

A autoestima voltou também graças à melhora no quadro clínico e à gradativa retomada da rotina. A estudante já recuperou todos os movimentos do lado direito do corpo e, do lado esquerdo, ainda há restrições quanto à perna e aos movimentos finos da mão. Para se locomover a curtas distâncias, ela faz uso de um par de muletas canadenses e utiliza a cadeira de rodas quando precisa percorrer um caminho mais longo, como passear no shopping center.



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Fotografia em plano retrato. Flávia é uma moça de 22 anos, pele branca bronzeada, cabelos pretos lisos compridos na altura do peito. Ela sorri, usa uma blusa preta com brilhos dourados e batom vermelho. Atrás dela, há um fundo branco.

FLÁVIA NOSRALLA

Reportagem | Redação | Edição

flavia_nosralla@hotmail.com

Fotografia em plano retrato. João Pedro é um rapaz de 21 anos, pele branca, cabelos pretos lisos curtos. Ele usa óculos de armação preta e blusa roxa. Atrás dele, há um fundo marrom.

JOÃO PEDRO DURIGAN

Edição de Vídeo

jpdurigan@gmail.com

Fotografia em plano retrato. Júnior é um rapaz de 25 anos, pele branca, cabelos castanho lisos curtos. Ele sorri e usa um casaco preto. A luz do sol incide atrás dele.

JÚNIOR MORASCO

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Fotografia em plano retrato. Suely é uma mulher de 40 anos, cabelos castanhos lisos compridos na altura dos ombros. Ela sorri, usa um casaco laranja e um cachecol cinza amarrado ao pescoço. Atrás dela, há uma construção de pedra e vegetação verde.

SUELY MACIEL

Coordenação Geral

suelymaciel@faac.unesp.br

CONSULTORIA

Ana Raquel Mangilli

Daniel Ribas

Lana Pacheco

Ivan Siqueira Reis

FOTOGRAFIA

Kica de Castro

LOCUÇÃO

William Orima

ANIMAÇÃO

Lucas Loconte


UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" - UNESP

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO - 2016