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TUDO PODE SOB OS LENÇÓIS

Foto em preto e branco mostra um casal de aproximadamente 30 anos. A mulher é branca, de cabelos loiros compridos. Ela está deitada com a lateral esquerda do corpo apoiada ao chão, de forma que a câmera, que também está na altura do chão, visualiza seu corpo de frente. Ela está nua, mas os seios e o baixo ventre estão cobertos por um pano preto de caveiras brancas, simulando uma blusa curta e uma saia. Sua cabeça está apoiada na perna direita de um homem, suas mãos tocam o joelho dele e ela está com a cabeça virada para cima na direção dele. O homem é branco, tem cabelo curto preto, barba e cavanhaque pretos. Ele está sem camisa, sentado atrás dela e apoia a mão direita no chão, passando o braço pela frente do corpo dela. A mão esquerda acaricia os cabelos da moça. Ele está inclinado em direção ao rosto dela e os dois se olham; ela sorri. Atrás deles, há uma cadeira de rodas.
Paula Ferrari tem Mielite Transversa. Samir não tem deficiência.
Foto: Kica de Castro.
Início do conteúdo.

SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIA

Fotografia em preto e branco de plano médio de uma mulher de aproximadamente 40 anos, branca, cabelos pretos lisos compridos. Ela veste um sutiã, está deitada em cima de uma cama, apoiando a cabeça sobre a roda de uma cadeira de rodas que está dobrada também em cima da cama. Seus cabelos estão soltos, jogados para cima e ela segura o aro propulsor da cadeira com as mãos, deixando os braços para cima da cabeça. Ela aparece na parte direita da foto, com a cabeça no centro da imagem.

AUTOESTIMA

Foto em preto e branco mostra uma mulher de aproximadamente 40 anos, branca, olhos pretos e cabelos pretos lisos compridos na altura do peito. Ela sorri com os lábios cerrados, está nua, sentada sobre um pano xadrez com as pernas levemente arqueadas na altura do joelho. Ela está com os braços junto ao corpo, tampando os seios e entrelaçando os fios de cabelo por entre os dedos das mãos. Seu corpo está de perfil em relação à câmera e sua cabeça está virada na direção da foto. Ela está focada em segundo plano e, em primeiro plano, há alguns desenhos brancos desfocados da cabeça de um tigre e arabescos.

RELACIONAMENTOS

Foto em preto e branco mostra um casal de aproximadamente 30 anos. A mulher é branca, de cabelos pretos lisos compridos, usa vestido com renda e sapato de salto. Ela está sentada no chão de perfil, com as pernas esticadas e a perna esquerda cruzada por cima da perna direita. Ela sorri, com a cabeça virada para o lado, na direção da câmera. Atrás dela, há um homem branco, de cabelos pretos ondulados na altura da orelha, vestindo camiseta de manga curta, bermuda preta com listras brancas na lateral e tênis esportivo. Ele usa próteses nas duas pernas. Está ajoelhado sobre a perna esquerda e mantém a perna direita esticada, de forma que a sola do seu tênis está em primeiro plano. A mão direita está sobre a coxa da perna esticada e ele apoia a mão esquerda no chão, atrás da moça, inclinando seu corpo em direção a ela, sorrindo.

REPRODUÇÃO

Foto em preto e branco mostra uma mãe dando mamadeira ao filho bebê. Em primeiro plano, vê-se o detalhe do rosto de uma mulher de aproximadamente 30 anos, pele branca, olhos pretos, cabelos pretos lisos curtos. Seus olhos delineados por um lápis preto. Em segundo plano, desfocado, vê-se a mão direita da mulher levando uma pequena mamadeira com leite à boca de um bebê recém-nascido. O bebê está envolto em uma manta branca.

Prazer sexual vai além de corpos padronizados e malabarismos na cama


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Mas pessoa com deficiência consegue fazer sexo?”. Consegue sim. Ô se consegue. E se você acha que a condição dela faz com que a relação sexual seja inferior em qualidade ou não dê tanto prazer, saiba que você está muito enganado. Na deficiência, como em qualquer outra situação, é preciso buscar a forma mais proveitosa de canalizar a libido e vivenciar a sexualidade.

Quando a condição física ou sensorial acarreta alguma limitação nos movimentos ou perda da sensibilidade e do estímulo, total ou parcial, de algumas áreas, tudo o que se tem a fazer é buscar uma adaptação, encontrar o melhor jeito de lidar com aquele pormenor. A pessoa deve descobrir quais potencialidades o próprio corpo oferece e como desfrutar delas: há posições que podem ser mais confortáveis ou proporcionarem mais excitação, há potenciais zonas erógenas apenas esperando por uma descoberta, há sentidos a serem reaguçados etc. Em suma, viver a sexualidade na deficiência é passar por desafios específicos, nada muito diferente do que qualquer casal ou indivíduo pode ter de enfrentar nos encontros eróticos.

A condição física pode sequer interferir na hora do sexo. A atriz e empresária Priscila Menucci tem nanismo e conta que geralmente não vivencia nenhuma complicação na relação sexual. “Só há problema se o pênis tiver um tamanho fora do normal”, destaca, revelando uma condição que pode incomodar também outras mulheres sem deficiência, mas com pequena estatura ou baixo colo do útero.

Foto colorida vertical de uma mulher deitada de bruços sobre uma mesa. A mulher tem aproximadamente 30 anos, branca, cabelos loiros lisos curtos na altura da orelha, olhos pretos. Seus olhos estão maquiados, ela usa batom vermelho e um colar dourado e preto. Ela veste um colan preto com lantejoulas pretas, vermelhas e brancas na parte traseira, meia calça preta rendada e sapato de salto vermelho. Ela está com os pés cruzados e apoia os cotovelos sobre a mesa, levando a mão direita ao queixo. Atrás dela, sobre a mesa em que está deitada, há um vaso de folhas verdes e flores amarelas e, mais ao fundo, um abajur branco.
Priscila Menucci tem 91 cm de altura e, além de atriz e empresária, trabalha como modelo.
Foto: Kica de Castro.

As deficiências sensoriais podem comprometer a comunicação, muito importante para o momento do encontro, da sedução e do sexo, pois afetam os olhos e os ouvidos. A excitação sexual, por exemplo, vale-se bastante da visão, uma vez que é o sentido inicialmente mobilizado na paquera, a primeira forma de contato entre duas pessoas que podem vir a se relacionar. Além de ser uma das formas de aproximação mais valorizadas, a visão também é amplamente estimulada na produção de conteúdos eróticos – a indústria pornô que o diga. Quando o indivíduo é acometido pela deficiência visual, ele tem que buscar outras maneiras de suprir a ausência desse estímulo, e a audição, o olfato e o tato estão ao seu inteiro dispor.

Nesses casos, o 'bônus' proporcionado pelo toque é que, para criar uma imagem mental do parceiro, para entender como o corpo dele realmente é, a pessoa com deficiência visual terá de dedicar um tempo a mais apalpando e sentindo cada parte. E essa dedicação extra é benefício para ambos os parceiros: quem tem a deficiência acaba se concentrando mais e aproveitando melhor as sensações da relação sexual; quem é alvo dos toques terá as zonas erógenas mais detalhadamente exploradas – satisfação principalmente para as mulheres, que geralmente necessitam de preliminares mais cuidadosas e completas para atingir o orgasmo. Dessa maneira, a exploração de outros sentidos que não a visão, como o tato, acaba sendo um ponto positivo para ambos os amantes.

O ex-segurança Osvaldo Andrade, por exemplo, sofreu descolamento de retina e ficou cego depois de um episódio em que foi agredido enquanto trabalhava. Ele tinha cerca de 40 anos quando isso aconteceu e diz que hoje desfruta mais das relações sexuais do que antes de perder a visão. Já a técnica contábil Ariani Queiróz namorou um homem com deficiência visual e afirma que a relação sexual com ele era mais intensa. “Ele era muito mais gostoso. Pelo fato de não enxergar, ele tinha necessidade de tatear, então, para saber como eram os meus seios, por exemplo, tinha que demorar um pouco mais explorando-os para conseguir formar na mente dele como eu era”, explica Ariani, que usa cadeira de rodas para se locomover devido a sequelas da poliomielite.

Início da Entrevista

A imagem mostra o colo desnudo de uma mulher morena, da altura de seu pescoço até abaixo de seus seios. Duas mãos masculinas negras a abraçam por trás, tocando seus seios e cobrindo os mamilos dela com as pontas dos dedos.

Perda da visão desperta uma nova sensibilidade e novas maneiras de desfrute do corpo e da sexualidade

A falta deste valorizado órgão sensorial permite que o indivíduo atente aos demais sentidos e desfrute do sexo de maneira diferenciada

Leia o áudio completo aqui!

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Perda da visão desperta uma nova sensibilidade e novas maneiras de desfrute do corpo e da sexualidade


[Repórter - Flávia Nosralla]

As deficiências sensoriais não interferem organicamente na hora do sexo, ou seja, a perda da visão ou da audição não compromete a resposta sexual. O que elas fazem é alterar a percepção dos estímulos.

A cegueira, por exemplo, impede o contato visual, que é uma das formas de interação mais valorizadas quando se trata da excitação e da aproximação sexual.

Essa limitação, porém, faz com que a pessoa com deficiência visual lance mão de outras formas de estímulo, conforme relata a aposentada Fermina Mendes, de cinquenta anos. Ela perdeu a visão há vinte e sete anos em um acidente de carro.

[Entrevistada - Fermina Mendes]

A gente que não tem visão, a gente vai no tato, eu pelo menos sou assim... já vai no tato, né, então já vai conhecendo (risos).

[Repórter - Flávia Nosralla]

O estímulo à imaginação também é um fator importante para suprir a ausência de contato visual. O pintor Valdir Antônio Rodrigues, de quarenta e oito anos, ficou cego há cerca de quatro, por causa da Diabetes. Ele fala um pouco das suas experiências antes e depois da deficiência.

[Entrevistado - Valdir Antônio Rodrigues]

Eu já tenho uma diferença, eu gosto de ficar perto, ficar olhando a pessoa e isso afetou um pouco né, porque não dá pra ver. A gente fica numa certa perspectiva de “como será que a pessoa está se sentindo?”, falar é uma coisa, a expressão da pessoa é outra, e a gente não está vendo. Fica uma dúvida na cabeça, certa hora sim, o que será que a pessoa tá pensando? Às vezes a expressão da pessoa nem precisa falar né.

[Repórter - Flávia Nosralla]

Valdir estava casado havia quatro anos quando perdeu a visão, em 2012. AS lembranças da época em que enxergava são importantes como estímulo nas relações sexuais de hoje.

[Entrevistado - Valdir Antônio Rodrigues]

Não, eu deixo como está. Eu fico voltado no passado, fico na lembrança de quando enxergava. Pra mim é aquela expectativa de que aquilo quando enxergava é o mesmo que está acontecendo no dia de hoje. Eu acho. A gente tem que criar alguma coisa, né?

Fim da Entrevista

A outra deficiência sensorial, a auditiva, deixa em segundo plano ou até mesmo elimina a excitação advinda das conversas, dos gemidos e das provocações, tão presentes na relação sexual. Os aparelhos auriculares prestam grande auxílio nessa hora, mas, quando há alguma interferência que impede o som de chegar ao microfone, eles apitam, numa espécie de microfonia, o que não é raro de acontecer durante o sexo, quando os corpos estão sempre se encostando. Isso se confirma no caso da arquiteta Jéssica (que pediu para não ter o sobrenome identificado) de 24 anos. Ela tem perda auditiva de severa a profunda e tem de fazer escolhas na hora do sexo: “ou eu tiro o aparelho e fico sem entender o que é falado, ou eu fico com aparelho e tenho que ter cuidado para não esbarrar, porque ele começa a apitar. E tem vezes que não entendo nem usando o aparelho”. A concentração para entender o que é dito pelo parceiro atrapalha, “corta o clima”.

Já as deficiências físicas interferem, principalmente, na mobilidade do indivíduo. São diversos os motivos que podem levar uma pessoa a utilizar cadeira de rodas, muletas, aparelho tutor, órteses ou próteses para se locomover. Há doenças que diminuem a força muscular, como a esclerose múltipla e a poliomelite – que também pode paralisar um dos membros inferiores –, enquanto há doenças, infecções ou acidentes que podem levar à lesão medular e à amputação de membros. Em todos os casos, a redução da mobilidade, associada ou não à perda de sensibilidade, demanda uma adaptação às condições do corpo. Este pode ter menos força, limitar-se a determinadas posições ou se excitar com estímulos específicos. Enfim, aprender a lidar com a deficiência é também um processo de aprendizagem e conhecimento sobre a própria corporalidade.

A fisioterapeuta Paula Ferrari trabalha com a reabilitação sexual de pessoas com lesão medular e passou ela mesma por essa situação, após contrair mielite transversa durante uma cirurgia. Ela tem lesão medular incompleta na região T5 e, para curtas distâncias, consegue caminhar com muletas. A sensibilidade das pernas não foi afetada.

Há dois anos, Paula namora uma mulher que tem lesão medular completa e as duas aprenderam coisas novas juntas: “foi um processo bacana de redescoberta”, conta. Segundo ela, foi importante vivenciar com a parceira essa nova fase da vida. “O sexo muda um pouco, mas, muitas vezes, até para melhor, como foi o meu caso”, afirma.

Início do Vídeo

“Chegando lá - condição física não é inimiga do prazer”

Fim do Vídeo

A deficiência intelectual também exerce influência na maneira como o sexo acontece, pois este pode ser um momento bem delicado para quem é diagnosticado no Transtorno do Espectro Autista (TEA). Como a percepção do ambiente e dos fatores sensoriais (tato, olfato, audição, paladar e visão) pode ser muito intensa e desencadear crises de ansiedade, algumas pessoas acabam evitando o sexo para preservar-se das sensações desagradáveis. “Conheço alguém que não gosta de sexo por conta dos cheiros envolvidos. É uma pessoa muito sensível a cheiros, então tudo acaba ficando muito desagradável para ela”, comenta a estudante de Arquitetura e Urbanismo Fernanda Santana, que tem Síndrome de Asperger, um transtorno pertencente ao TEA. “Esse tipo de coisa pode acontecer com autistas, ou seja, não suportarem o toque, o cheiro ou o gosto de alguma coisa relacionada a sexo, aí toda a experiência fica arruinada”, comenta.

Para a jovem, no entanto, essa é uma parte da vida que ela vive sem preocupações relacionadas à Síndrome. “Posso dizer que gosto muito de sexo, mas não sei se é diferente de outra pessoa qualquer que também goste muito de sexo. Acho que não é nada muito fora do ‘normal’, mas é difícil ter certeza, porque esse é um detalhe que as pessoas não discutem sempre, então não sei bem como é para os não-autistas”, explica a estudante. Segundo ela, a dificuldade está em outro aspecto: “para você fazer sexo com outra pessoa, primeiro precisa aprender a falar com outra pessoa. Para gente como eu, esse costuma ser o obstáculo – os relacionamentos em si”.

Em diferentes casos dentro do TEA, a relação sexual pode servir como válvula de escape para as crises de ansiedade. O psicólogo cognitivo comportamental Lucas Xavier trabalha na Associação dos Familiares e Amigos dos Portadores de Autismo de Bauru (AFAPAB), e comenta que “às vezes, a pessoa não consegue gerenciar banco, finanças, não consegue trabalhar, mas consegue fazer sexo tranquilamente, porque alivia a ansiedade, dá prazer e é gostoso”. Nessas situações, é importante manejar a rotina da pessoa, para que ela consiga adequar os momentos de alívio das crises com os demais compromissos da vida, cuidando também de questões contraceptivas e de proteção às doenças sexualmente transmissíveis.

Conhecimento sobre si nunca é demais

A masturbação é uma atividade sexual importante na descoberta do próprio corpo, pois é através do autoconhecimento que o prazer pode ser aprimorado. Explorar as zonas erógenas, entender como o corpo reage a cada estímulo e saber as próprias preferências são fatores que auxiliam durante o orgasmo, seja sozinho ou com um parceiro.

O principal parâmetro de comparação entre “antes e depois” para a estudante universitária Paolla - que preferiu não identificar seu sobrenome na reportagem - é a masturbação, já que a primeira relação sexual da jovem foi após o acidente que sofreu, aos 20 anos, e que lesionou sua medula espinhal.

Durante uma festa de casamento, Paolla caiu do segundo andar de um hotel e quebrou a quinta vértebra da coluna, a C5. Isso fez com que ela perdesse os movimentos, do pescoço para baixo, durante um mês. Com fisioterapia intensiva todos os dias, os movimentos e a sensibilidade foram retornando.

No momento, dois anos após o acidente, o lado direito do corpo da estudante está totalmente recuperado, mas os movimentos da perna e da mão esquerdas ainda não voltaram na totalidade. A fase atual de recuperação depende do esforço e do alongamento proporcionados aos músculos, já que agora as melhoras demoram mais a aparecer – no começo do tratamento, o corpo recuperava movimentos a cada dia.

A estudante comenta que, depois do acidente, outras zonas erógenas, como seios, pescoço e orelha, tornaram-se mais sensíveis, em detrimento de sensações que se alteraram. “Acho que eu perdi um pouco da libido. Como já tentei me masturbar depois do acidente e não atingi o orgasmo ainda, eu acabei ficando um pouco desmotivada”, explica Paolla. Ela conta que a percepção do prazer se modificou. “Já cheguei a ter sensações parecidas com o orgasmo, mas não aquele pico de prazer intenso”.

A dificuldade para chegar ao orgasmo durante a penetração tem sido outro ponto observado por Paolla, que explica não ter certeza se isso é em virtude do acidente ou porque muitas mulheres, de fato, não conseguem atingir esse pico de prazer com a penetração. “Acho que eu tenho que me descobrir cada vez mais, me estimular mais para ver como é melhor”, finaliza ela.

Não, obrigada

Como a sexualidade é um direito, isso confere à pessoa com deficiência o poder de exercê-la da forma que mais lhe agradar, seja fazendo sexo, seja se abstendo dele. Afinal, há quem não sinta atração sexual, e isso não tem qualquer relação com a deficiência. A estudante universitária Luísa* tem distúrbio de movimento, deficiência auditiva e se descobriu demissexual. Ela conta que, quando era mais nova, percebia ter uma maior desinibição que as outras crianças. “Sempre tive paquerinhas na escola, era uma criança inserida dentro da heteronormatividade”. A adolescência foi uma fase de interiorização e, ao chegar à faculdade, ela resolveu buscar experiências afetivas que não saíram como o esperado.

Durante a época de graduação, Luísa ficou com rapazes, mas as tentativas não ocorreram como ela esperava. “Quando um cara me beijou na balada, eu quase enfartei depois. Passei muito mal, fiquei com um nojo enorme de mim mesma, achei que era uma violação ao meu corpo. Estranhei demais a minha reação”. Ainda assim, a garota buscou outras experiências do gênero e a sensação de repulsa sempre se repetia. “Eu estranhei, o que está acontecendo comigo? Por que todo mundo fala mil maravilhas sobre beijar e as minhas experiências foram horríveis?”. Luísa, então, resolveu procurar informações a respeito na internet – foi quando descobriu a comunidade assexual e a 'área cinza', onde muitas pessoas relataram o mesmo tipo de experiência.

Fotografia em plano médio de uma estátua de um casal se beijando. O homem está de perfil, com a cabeça inclinada para trás, passando o braço direito por trás da cabeça da mulher que está atrás dele. Ela está com o braço esquerdo esticado para cima, com a cabeça inclinada na direção da boca dele e segurando a cabeça do homem com a mão direita. Os dois têm os cabelos cacheados e estão com o peito nu. A foto foi editada com um filtro azul, de modo que toda a imagem está azulada.



“Eu estranhei, o que está acontecendo comigo? Por que todo mundo fala mil maravilhas sobre beijar e as minhas experiências foram horríveis?”.

Luísa, estudante




A demissexualidade se caracteriza pelo fato de a pessoa com essa orientação sexual precisar, obrigatoriamente, ter uma conexão afetiva, emocional ou psicológica com alguém para que consiga sentir atração sexual. Sem esta relação previamente estabelecida, não é possível, para o demissexual, se sentir atraído sexualmente por ninguém.

Este comportamento se enquadra dentro da chamada “área cinza”, que se estende dos assexuais - que não têm interesse ou sentem repulsa por sexo – até os alossexuais – que podem sentir atração e fazer sexo com qualquer indivíduo. O demissexual pode vir a desenvolver atração e ter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo (homossexual), do sexo oposto (heterossexual), dos dois sexos (bissexual), ou não enxergar essa distinção de gênero (panssexual), mas o importante é que a expressão desse desejo esteja intrinsecamente associada à existência prévia de outro tipo de relação. “É um estereótipo achar que a pessoa com deficiência vai ser heterossexual: pode ser assexual, homossexual, bissexual, qualquer orientação”, reitera a estudante.

Luísa conta que leu sobre “mulheres que engravidaram só para cumprir às expectativas sociais, mas que se sentiam estupradas, com nojo de si mesmas, e que isso era horrível”. Apesar de ter libido e desejo sexual ocasionalmente, as experiências que teve com beijos levaram a estudante a preferir não se arriscar mais além, pelo menos por enquanto.

Me dá uma mãozinha

A descoberta sexual das pessoas com deficiência pode ser feita com o auxílio de profissionais especializados para isso. O assistente sexual ou erótico atua como um terapeuta, auxiliando a pessoa com deficiência a descobrir o próprio corpo, a ter prazer com a condição física que possui, a conquistar confiança e autoestima. A terapia desenvolve-se por meio da conversa, do toque, de massagens e até mesmo de relações sexuais orais ou da penetração. Casais de pessoas com deficiência que estejam com dificuldades na área sexual também podem contratar os serviços de um assistente para encontrar melhores posições para o sexo, por exemplo.

A prostituição é comumente associada à assistência sexual, mas tratam-se de atividades distintas. É importante que os formados em Assistência Sexual tenham outra profissão, para que esta não seja a sua principal fonte de renda (em alguns países, associações de atendimento às pessoas com deficiência oferecem os serviços dos profissionais de maneira gratuita). Também há casos em que o número de sessões a que cada pessoa pode ter acesso é limitado.

Os assistentes devem atuar com respeito e dignidade, ficando atentos para qualquer sinal de envolvimento afetivo por parte da pessoa com deficiência. São também preparados para lidar com as especificidades dos diferentes tipos de deficiência física e intelectual, como o corpo frágil ou o uso de coletores e fraldas geriátricas.

Um filme que aborda esse tema com humor e clareza é o americano As Sessões, dirigido por Ben Lewin e lançado em 2012. A trama conta a história de Mark O’Brien, interpretado por Mark Hawkes, escritor que vive dentro de um pulmão de aço e só tem os movimentos da cabeça, devido a sequelas de poliomelite. Sem nunca ter feito sexo antes, ele irá conhecer a assistente sexual Cheryl Cohen-Greene, vivida por Helen Hunt. O longa explicita as delicadas e importantes questões envolvidas na relação entre um assistente sexual e uma pessoa com deficiência. A atuação no filme rendeu a Helen a indicação ao Oscar de melhor atriz no ano seguinte.

A Suíça forma profissionais na área desde 2004, segundo o site Swissinfo, que traz notícias do país. Ele informa que, desde 1980, os Estados Unidos e países do norte da Europa capacitavam pessoas para atuarem como assistentes sexuais. Também há especialistas na Alemanha, Dinamarca, Bélgica e Holanda.

O assunto começou a gerar debates na Argentina, e o Brasil é o próximo da fila. Formada em Direito, assistente social, funcionária pública e palestrante sobre sexualidade e inclusão das pessoas com deficiência, Márcia Gori fundou a ONG Essas Mulheres. A organização, que auxilia mulheres com deficiência vítimas de violência doméstica, sexual e/ou psicológica, está finalizando um Projeto de Lei que cria a profissão de Assistente Sexual no país. “Não serão profissionais do sexo, serão terapeutas que ajudarão a pessoa com deficiência a descobrir seu próprio corpo, os locais de prazer”, explica Márcia.

Início do Vídeo

“Mão amiga - assistentes sexuais dividem a opinião de pessoas com deficiência”

Fim do Vídeo

Uma das críticas à atuação dos assistentes é a de que o estabelecimento da profissão consolidaria a ideia de que as pessoas com deficiência não são capazes de conquistar parceiros e de fazer as próprias escolhas. Segundo Márcia Gori, esse receio parte de pessoas com deficiência quem têm domínio sobre o próprio corpo e sobre os próprios pensamentos. Ela, porém, refuta a tese, alegando que, para algumas pessoas, pode não ser tão simples se empoderar acerca de sua condição ou sair para paquerar e encontrar um companheiro.

O preconceito com a deficiência também é uma barreira comum para que as pessoas com deficiência possam viver plenamente sua sexualidade, além de muitas não estarem no padrão de beleza estabelecido hegemonicamente no meio social, o que dificulta ainda mais a autoaceitação e os encontros com o outro. O assistente sexual poderia auxiliar na supressão dessa lacuna. “Essa pessoa tem direito de ter relações, de sentir prazer, de se sentir protegida, e por que não pode ser um profissional? Por que não proporcionar esse prazer e essa descoberta do corpo?”, argumenta Márcia. O intuito do assistente erótico seria o de auxiliar no conhecimento sobre o que o corpo da pessoa pode lhe proporcionar.

“Se a pessoa quer o prazer e não tem ninguém disponível no momento, não acho errado chamar um assistente sexual, desde que haja limites e regras”, comenta a estudante universitária Luísa. “Mas não é todo deficiente que vai ter dificuldade de achar parceiro, depende do momento, do meio em que se está inserido”, conclui ela.

Agora eu quero só você

Contrariando a tendência de padronização dos corpos que os meios de comunicação geralmente propagam, há pessoas que enxergam na deficiência o suprassumo da realização sexual. Elas são devotees, ou praticantes do devoteísmo, que sentem atração sexual e/ou afetiva por pessoas com deficiência por causa da condição física destas. Atualmente, o devoteísmo é considerado uma parafilia, termo amplo (antigamente utilizava-se “perversão”) que engloba atitudes e desejos sexuais por pessoas, objetos ou atividades incomuns, não aceitos pela sociedade.

Há parafilias que são consideradas como preferências sexuais, como o fetiche por pés (podolatria) e o desejo de ter conversas obscenas pelo telefone (escatologia telefônica). Existem práticas menos aceitas, como o uso de urina na relação sexual (urofilia), e outras que são crime, como a zoofilia (sexo com animais), a necrofilia e a pedofilia. O conceito se modifica com o passar do tempo e de acordo com a cultura na qual está inserido, aliás, a masturbação e os sexos oral e anal já foram considerados parafilias.

No caso do devoteísmo, o motivo da atração é a deficiência do parceiro e ela é que funciona como gatilho para a atração, cujo desenlace pode ser uma única transa ou uma relação afetiva mais duradoura e intensa, com amor, carinho e cuidado.

Para explicar como o devotee se sente, a bacharel em Direito Juliana Lourenço costuma comparar o “devote-ísmo” (grafia usada por ela seria uma forma de destacar que não se trata de uma doença) com a homossexualidade, “que foi vista pela psicologia como um desvio e hoje tem seus direitos garantidos em lei”. Ela afirma que “gays não optam pela sua orientação, mas há quem queira dizer que é uma patologia” e ressalta que “o devoteísmo não é uma opção, não é apenas sexual, é todo um comportamento”.

Juliana tem 38 anos e é criadora e uma das administradoras da página “Deficientes, Devotees e Simpatizantes”, na rede social Facebook. Ela fala com propriedade sobre o devoteísmo, pois está dos dois lados: tem deficiência e é devotee. Aos 20 anos de idade, Juliana sofreu um acidente de moto e teve a perna esquerda amputada, mas antes desse acontecimento já se sentia atraída por pessoas com deficiência.

Ela diz que nunca se viu “como alguém pervertida ou doente por conta dessa preferência”, por isso fala abertamente sobre o assunto, utilizando seu perfil pessoal. Muitos devotees escondem sua preferência por medo de represálias ou preconceito.

Em geral, há uma diferenciação entre a maneira como a mulher e o homem devootee se comportam. O homem reproduz o estereótipo de “caçador”, que conquista e deixa a parceira em submissão. Para a mulher, a questão da deficiência é encarada de maneira maternal e cuidadora, conforme relata a manicure Andressa*, de 36 anos. Para ela, o devoteísmo é muito mais que um simples fetiche. Ela explica: “eu busco relacionamento. Vejo muitos devotees procurando apenas satisfação sexual, isso não serve para mim. Quero uma pessoa deficiente sim, para viver junto, constituir família”, e conta que é “extremamente cuidadora, de encarar tudo, o que inclui ter que ajudar às vezes, pegar no colo, trocar uma fralda. Encaro isso com naturalidade”, explica Andressa. Até o momento, ela não iniciou nenhum relacionamento duradouro, apenas “ficou” com dois rapazes, “homem com deficiência é, muitas vezes, mal resolvido”, comenta a manicure.

Andressa já se relacionou com homens sem deficiência, mas não gostou da experiência. “Um homem com deficiência é muito mais carinhoso, a troca é muito mais intensa”. Seus parceiros com essa característica foram dois. Com o primeiro, que conheceu pela internet, não houve sexo, pois ele tinha lesão medular e, na época, a ereção ainda não havia voltado. Já o segundo era cadeirante por sequela de Poliomielite, que não afeta a resposta sexual. “Para mim, foi proveitoso, acredito que para eles também. Minhas expectativas foram totalmente correspondidas, não prosseguiu porque não era pra ser, como qualquer outro relacionamento”.

Há algumas categorias nas quais os devotees se dividem, apesar de todas estarem relacionadas: os considerados “normais”, que sentem atração afetiva e/ou sexual pela pessoa com deficiência; os Wannabes, que têm vontade de se tornarem deficientes, mas não o fazem, podendo simular algumas deficiências na relação sexual pelo uso de vendas ou usando uma cadeira de rodas como apoio; e os Pretenders, que desejam a deficiência de fato, muitas vezes utilizando aparelhos ortopédicos ou muletas, sentindo rejeição pelos membros. Alguns até tentam se tornar deficientes – há casos de homens que congelaram as próprias pernas para tentar amputá-las.

A arquiteta Jéssica*, que tem perda de audição severa, não concorda com o Devoteísmo. “Uma coisa é você se relacionar com um deficiente porque gosta dele e a deficiência é um detalhe, uma característica que o distingue como tantas outras. Outra coisa é a pessoa focar na deficiência especificamente, acho meio doentio”, conclui.

Para o técnico de materiais Alexandre*, o devoteísmo é uma “loucura”. “Há loucos para tudo, para amar é preciso ser um pouco louco”, afirma. Ele tem perda de audição de severa a profunda desde os oito anos de idade e realizou cirurgia de implante coclear quando tinha 24. Alexandre afirma que “com certeza” se relacionaria com uma mulher devotee, além de que não se incomodaria nem um pouco se a deficiência fosse um fetiche para ela.

“Sou completamente favorável ao devoteísmo”, afirma Márcia Gori, criadora da ONG Essas Mulheres, que utiliza a cadeira de rodas por causa de sequela de poliomielite. “Eu não vejo mal nenhum uma pessoa olhar para mim e ter certo interesse pela minha deficiência”. Para ela, é uma questão de preferências. Márcia concorda com a opinião de que uma pessoa deve gostar da outra pelo fato de quem ela é, mas, até que alguém a conheça por inteiro, a atração inicial se dará pela deficiência. “Eu vou ter alguma coisa que vai atrair a outra pessoa, seja minha deficiência, estatura, meu peso, seja o que for. Não importa. A gente se aproxima de pessoas por padrões que nós escolhemos como desejáveis para nós, e os devotees também têm esses padrões”.

Foto colorida vertical de corpo inteiro de um casal. Na parte esquerda da imagem, há homem de aproximadamente 30 anos, negro, careca. Ele está de olhos fechados, sem camisa, veste calça jeans e tênis e tem uma tatuagem na parte de trás do braço direito. Ele está de perfil, agachado de frente para uma mulher, encostando seu rosto no dela e segurando em sua coxa esquerda. A mulher tem aproximadamente 40 anos, branca, cabelos loiro claros lisos e bem curtos. Ela está de olhos fechados, batom vermelho, vestido branco e preto e tem o braço esquerdo repleto de tatuagens coloridas. Ela está sentada em uma cadeira de rodas pink, enquanto encosta sua mão esquerda sobre o braço tatuado do homem e apoia a perna esquerda sobre a perna dele. Atrás deles, um fundo azul de estúdio.
Em 2010, a empresária Márcia Gori, que tem paraplegia, e o modelo sem deficiência Faraoni Fontes fizeram parte da campanha “Devoteísmo: uma questão de escolha”.
Foto: Kica de Castro

O preconceito que há em relação ao devoteísmo tem explicação para a manicure Andressa, seria “por causa de pessoas de índole duvidosa, que usam da preferência para se aproximar e aproveitar de pessoas com deficiência, fazendo pedidos estranhos, usando para o sexo apenas o membro deficiente, coisas assim”. Práticas que humilham ou rebaixam a pessoa com deficiência não a interessam. “Existem devotees que pedem para seus parceiros não usarem a cadeira, se arrastarem... Isso fere o devoteísmo. As pessoas generalizam. Eu jamais pediria para o meu parceiro se arrastar se eu posso pegá-lo no colo”, explica Andressa. “Com consentimento, carinho, cumplicidade, vale tudo”, conclui ela.



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Fotografia em plano retrato. Flávia é uma moça de 22 anos, pele branca bronzeada, cabelos pretos lisos compridos na altura do peito. Ela sorri, usa uma blusa preta com brilhos dourados e batom vermelho. Atrás dela, há um fundo branco.

FLÁVIA NOSRALLA

Reportagem | Redação | Edição

flavia_nosralla@hotmail.com

Fotografia em plano retrato. João Pedro é um rapaz de 21 anos, pele branca, cabelos pretos lisos curtos. Ele usa óculos de armação preta e blusa roxa. Atrás dele, há um fundo marrom.

JOÃO PEDRO DURIGAN

Edição de Vídeo

jpdurigan@gmail.com

Fotografia em plano retrato. Júnior é um rapaz de 25 anos, pele branca, cabelos castanho lisos curtos. Ele sorri e usa um casaco preto. A luz do sol incide atrás dele.

JÚNIOR MORASCO

Desenvolvimento do Site

jrmorasco@hotmail.com

Fotografia em plano retrato. Suely é uma mulher de 40 anos, cabelos castanhos lisos compridos na altura dos ombros. Ela sorri, usa um casaco laranja e um cachecol cinza amarrado ao pescoço. Atrás dela, há uma construção de pedra e vegetação verde.

SUELY MACIEL

Coordenação Geral

suelymaciel@faac.unesp.br

CONSULTORIA

Ana Raquel Mangilli

Daniel Ribas

Lana Pacheco

Ivan Siqueira Reis

FOTOGRAFIA

Kica de Castro

LOCUÇÃO

William Orima

ANIMAÇÃO

Lucas Loconte


UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" - UNESP

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO - 2016