A
Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, sancionada em 06 de julho de 2015, entrou em vigor no início de 2016 e nela, dentre outras importantes questões, a reprodução aparece como um dos direitos do qual a pessoa com deficiência usufrui. O artigo 6º determina que “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa” para diversos tópicos relacionados ao campo da sexualidade. Dentre eles, o artigo III cita “o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre a reprodução e planejamento familiar”.
Esse direito, entretanto, foi e é negado por várias razões e de diversas maneiras na sociedade. A família tem papel fundamental nesse aspecto, pois, muitas vezes, é ela quem primeiro recusa a experiência sexual para essa pessoa, encarando, a partir do diagnóstico da deficiência, que ela será incapaz de namorar, casar e ter filhos.
Uma das técnicas de controle utilizadas pelas famílias era a esterilização compulsória, muitas vezes realizada sem o conhecimento da pessoa com deficiência para impedir que ela gerasse descendentes. Para coibir essa prática, o parágrafo 6º, artigo IV da referida Lei explicita o direito de “conservar a sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória”.
Algumas deficiências físicas ou intelectuais exigem que a pessoa tenha um(a) cuidador(a) permanente para auxiliar em tarefas básicas do cotidiano que garantem autonomia individual, como trocar de roupa, ir ao banheiro ou tomar banho. O argumento de que, portanto, pessoas com essas deficiências não estariam aptas a cuidar de uma criança também foi utilizado contra elas. Precisar de cuidados não significa ser incapaz de gerar e criar um filho.
De modo mais sutil, o direito à reprodução é retirado nas entrelinhas. Quando a família não faz planos sobre namoro, casamento e filhos, ignorando o assunto, indiretamente mostra que não se espera que a pessoa com deficiência desenvolva uma vida amorosa e tenha filhos. Não é preciso expor esse pensamento de maneira objetiva, pois o silenciamento em torno da questão reprodutiva também atua como uma forma de retirar este direito.
As diferentes formas de não permitir, ou não prestar auxílio para a pessoa com deficiência que deseja ter filhos são resultantes, em grande parte, das construções sociais que existem em torno da deficiência. Biologicamente, são poucas as condições físicas, sensoriais e intelectuais que, de fato, impedem a reprodução.
Dentre elas, está a Síndrome de Down. Há 50% de chances do filho de uma mulher sindrômica nascer com o gene responsável. Quando é o homem que possui a Síndrome, muitas vezes ela o torna estéril, portanto, é impossível que ele gere descendentes – com raras exceções. Também há casos em que a lesão medular em homens dificulta ou impossibilita a ejaculação, ou reduz a qualidade do sêmen produzido.
Grande parte das deficiências não proporciona impeditivos orgânicos para a reprodução, resultantes da constituição biológica do indivíduo, conforme ressalta a Psicóloga Ana Carla Vieira. Ainda que a deficiência seja hereditária, cabe à pessoa escolher se deseja ter filhos ou não. Para auxiliar essa decisão a ser tomada da melhor maneira, é preciso investir na educação sexual, garantindo que a pessoa saiba como se prevenir de doenças sexualmente transmissíveis e de uma gravidez não planejada.
Ana Carla explica que é comum, quando a pessoa com deficiência intelectual resolve ter um filho, que a família acompanhe o processo, principalmente em casos nos quais o indivíduo tem interdição judicial. Numa reunião, o casal em questão, família e médicos discutem aspectos relacionados ao nascimento da criança, como se há recursos financeiros para tal decisão ou o fato de os parentes precisarem auxiliar caso haja necessidade. Além, é claro, de cuidados básicos com a saúde da gestante.
Mãe de dois meninos, a atriz e empresária Priscila Menucci tem nanismo. A doença é genética e interfere no crescimento esquelético do corpo, que pode ocorrer de maneira proporcional ou não. Ela é casada com um homem que também tem nanismo. Mesmo não planejando engravidar, Priscila conta que, no geral, as duas gestações que teve correram bem. O primeiro filho nasceu prematuro, com oito meses, por conta de uma diabetes gestacional que antecipou o parto. Já na gravidez do caçula, não houve ocorrências. “Eles têm nanismo, acondroplasia, igual ao do meu marido – o gene dele é predominante”, conta ela sobre os dois meninos dos quais é mãe. Na acondroplasia, o crescimento é desproporcional, sendo que a cabeça costuma ser avantajada em relação ao corpo, a testa é alongada e os membros são mais curtos. Com 40 anos, Priscila já realizou a cirurgia de laqueadura, que impossibilita outras gestações, pois não pretende ter mais filhos, “trabalho muito, não dá para ter mais bebê”, finaliza a atriz.
A maternidade é um dos desejos da estudante de Arquitetura e Urbanismo Fernanda Santana, que tem Síndrome de Asperger, um transtorno neurológico pertencente ao Transtorno do Espectro Autista. Como há estudos que indicam que o autismo pode ser hereditário, ela está fazendo exames investigativos com um geneticista e, aparentemente, as chances de um filho dela nascer dentro do Espectro estão entre 35 a 50%. “Esse é um assunto bem delicado que eu ainda pretendo discutir muito com o meu namorado. Quero que ele esteja perfeitamente de acordo e ciente das possíveis consequências. Mas, a princípio, sim, dois ou três filhos soam bem legal para mim”, comenta a estudante.
Sobre ser mãe de crianças com autismo, Fernanda diz que até espera que pelo menos um de seus futuros filhos tenham Asperger. “Para mim, é uma característica, como cor da pele, cor dos olhos, cabelo... sabe, aquilo que ‘puxou a mãe’. Eu gostaria disso”, conta a futura Arquiteta. O Transtorno do Espectro Autista abarca Síndromes de diferentes graus, que afetam o indivíduo nas áreas de interesse, cognição e comunicação. O receio que ela sente é quanto a ter um filho com “autismo clássico, porque aí as dificuldades são bem maiores, não só para a vida, mas financeiramente também”. Fernanda ainda está na faculdade e mora com os pais. Como a possibilidade de um filho autista existe, ela diz que planejará muito bem a futura gravidez e, antes de tentar de fato, a futura arquiteta irá garantir uma reserva de dinheiro para caso precise arcar com um tratamento para autismo.
Deficiências podem ser transmitidas geneticamente, o que exige planejamento na hora de decidir ter um filho
[Repórter - Flávia Nosralla]
Os preconceitos e tabus que são perpetuados acerca da sexualidade das pessoas com deficiência fazem com que certos direitos que elas têm acabem sendo negados. Tratar a pessoa com deficiência como assexuada é uma forma de desconsiderar a capacidade dela de ter filhos. A possibilidade de se reproduzir ou não, na maioria das vezes, é questão de escolha, mas há síndromes que deixam a pessoa estéril ou dificultam a gravidez.
No caso de pessoas com o Transtorno do Espectro Autista, não há impeditivos biológicos para a reprodução. O psicólogo cognitivo comportamental Lucas Xavier trabalha na Associação Dos Familiares e Amigos dos Portadores de Autismo de Bauru, a AFAPAB. Ele explica que ainda não é garantido que os filhos de autistas nascerão com o transtorno.
[Entrevistado - Lucas Xavier]
A maioria das crianças autistas, os pais têm traços, mas esses traços ainda não foram determinados geneticamente “é isso” e nem comportamentalmente “é isso”, mas, se você for reparar, a maioria dos pais de autistas tem algum traço: ou toque, ou rotina, ou padronização, ou manipulação, ansiedade... mas isso todo mundo tem, né? Não dá para falar com certeza que vai ser passado, porque não tem nem certeza que é genético. Pode ser que o que o levou a ser autista foi uma falta de oxigenação durante o nascimento, aí fez um monóxido, deu um coágulo, coisa e tal. Então é bastante divergente nesse ponto, porque a genética tem um limite também. Essa ruptura a gente ainda não conseguiu identificar.
[Repórter - Flávia Nosralla]
Já no caso de pessoas com Síndrome de Down, a psicóloga Ana Cláudia Maia explica que a questão genética é bem definida.
[Entrevistada - Ana Cláudia Maia]
O menino Down é infértil. Tem casos raríssimos na literatura de conseguir a gravidez, mas, via de regra, eles têm problemas no espermatozoide, testículo não produz espermatozoide adequado. Então por que não pode transar se o problema é ter filho? É que a gente pensa na prevenção de doenças também, mas o menino Down é mais difícil de reproduzir mesmo. A menina Down tem 50% de chances de ter um filho com Down, tendo relação com alguém não-sindrômico. Se tivesse Síndrome de Down, em tese aumentaria essa chance, mas também não é 100%. Também é um equívoco achar que todo “Down com Down” teria filho com Down, até porque o menino é infértil.
[Repórter - Flávia Nosralla]
É importante prestar auxílio e informação caso a pessoa com deficiência possa e queira ter filhos, pois a reprodução é um direito garantido por lei.
No caso do jornalista Sergio Guzzi, a artrogripose congênita fez com que ele nascesse com o quadril fora do lugar, sem articulação no joelho esquerdo e com os pés tortos. A doença provoca a contratura das articulações do corpo. Ele é casado e a deficiência não interferiu na formação de seus dois filhos, pois a doença só é transmitida geneticamente da mãe para o filho. Ainda assim, “quando descobrimos que a minha esposa estava grávida, fizemos inúmeras pesquisas, pois eu temia mais que ela”, conta o jornalista. “No caso, se ela tivesse algum problema ou histórico familiar, as chances de meus filhos nascerem com sequelas eram reais”.
Reportagem | Redação | Edição
flavia_nosralla@hotmail.com
Edição de Vídeo
jpdurigan@gmail.com
Desenvolvimento do Site
jrmorasco@hotmail.com
Coordenação Geral
suelymaciel@faac.unesp.br
Ana Raquel Mangilli
Daniel Ribas
Lana Pacheco
Ivan Siqueira Reis
Kica de Castro
William Orima
Lucas Loconte